Pracinhas gaúchos relembram participação na guerra no Dia do Expedicionário

Pracinhas gaúchos relembram participação na guerra no Dia do Expedicionário

Dificuldades, aprendizado e reconhecimento italiano marcam memórias dos veteranos

Felipe Nabinger

Capitão Elmo junto ao Monumento do Expedicionário, em Porto Alegre

publicidade

Com firmeza nos movimentos, lucidez e memória afiada, o senhor de 100 anos de idade aponta para um mapa emoldurado na parede do apartamento em que mora, no bairro Farroupilha, em Porto Alegre. Em uma época que basta digitar nosso destino no celular, aquele pedaço de papel restaurado foi o “GPS analógico” do capitão Elmo Diniz na Itália, em plena II Guerra Mundial. Ex-combatente das Força Expedicionária Brasileira (FEB), o centenário mantém esse documento histórico junto de homenagens e fotos que marcam sua vida.

Com a missão de prestar assistência ao fardamento das tropas, o pracinha utilizava do mapa e também do diálogo com os italianos que simpatizavam com as tropas do lado aliado. Embora o brasão da FEB trouxesse uma cobra fumante, referencia ao lema “A cobra está fumando” - que por sua vez faz alusão à frase “é mais fácil uma cobrar fumar do que o Brasil entrar na Guerra”, o capitão nunca fumou. Porém, o cigarro ajudou a estreitar esses laços com os locais. “Recebíamos junto com o jantar um maço de cigarros. Nunca fumei e trocava com os italianos por garrafas de vinho”, recorda. Apesar desse laço estreitado, o ex-combatente jamais quis voltar à Itália. “Vi poucos cadáveres, mas vi”, lamenta ainda trazendo marcas do conflito na memória.


Capitão Elmo emoldurou mapa usado na guerra | Foto: Matheus Piccini

Filho de tropeiro, nascido em Lagoão, distrito de Cruz Alta, assim como o pai ele se acostumou a percorrer grandes distâncias cumprindo as missões de dar suporte às tropas. O pracinha diz que os percursos em solo italiano tinham de 100 quilômetros para mais, realizados em condições climáticas adversas, abaixo de neve e com temperaturas de -15°C, em território conflagrado pelo confronto contra as tropas nazifascistas.

“Fomos para lá sem preparo. Nossos uniformes não eram para isso e nosso armamento era precário. Brigamos na coragem e no orgulho de ser brasileiro”, explica outro herói de guerra residente em Porto Alegre, o tenente Luiz Alves de Souza, 98, que conversou com Correio do Povo em sua casa, na Hípica. Ele lamenta que, ainda hoje, ideais contra os quais lutou na Europa ainda resistam até mesmo em solo brasileiro. “Aqui no Brasil temos nazistas. Está muito camuflado, mas que tem aqui tem”.

Atuando como motorista, Luiz diz que na época acabou conhecendo mais da Itália do que conhecia do Rio Grande do Sul. Embora se orgulhe de ter feito parte da FEB e tenha a vivência na Europa como um “aprendizado” que o ajudou a valorizar a vida, o tenente define as guerras como “estupidez” e “ambição pelo domínio por questões econômicas”..


Tenente Luiz com quadro que mostra mapa da campanha na Itália Foto: Matheus Piccini

Nascido em Linha do Coqueiral, distrito de São Luiz Gonzaga, é possível dizer que, a exemplo de Elmo, a função na guerra foi de certa forma seguindo os passos do pai. Bento Alves de Souza era balseiro, levando pessoas, animais e produtos comerciais de uma margem à outra do rio Ijuí. No caso do pracinha, o transporte de equipamentos, guarnições e membros da tropa se dava em meio terrestre.

Mais de 25,8 mil brasileiros foram destacados para atuar pela FEB durante a II Guerra Mundial, executando mais de 400 missões, entre o segundo semestre de 1944 e a rendição das tropas alemãs em maio de 1945. Foram 467 baixas em combate entre os pracinhas. No dia 8 de maio é celebrado o Dia da Vitória, como marco da vitória dos Aliados sobre as tropas nazistas e fascistas.

Fotos do arquivo pessoal do capitão elmo: frio e neve foram adversários dos pracinhas | Foto: Matheus Piccini

Reconhecimento na Itália é maior

Hoje, 5 de maio, celebra-se o Dia Nacional do Expedicionário, em homenagem à FEB na chamada “Campanha da Itália”, entre 1944 e 1945. Apesar da efeméride, os pracinhas entendem que há mais reconhecimento na Europa do que no próprio Brasil. “Na Itália, há regiões em que somos lembrados até hoje, como Montese. O povo italiano é muito grato a nós. Não havia comida compartilhávamos a nossa”, conta o capitão Elmo.

A professora Mariza Terezinha Alves de Souza, 65, uma das quatro filhas do tenente Luiz, que ainda teve um filho, já falecido, servindo na Polícia do Exército, lamenta o pouco reconhecimento dos feitos dos pracinhas. “Comecei a ter consciência que meu pai era um herói de vinte anos para cá, pois pouco se falava dos heróis da FEB. Com todo o despreparo e deficiência que tinham, eles atravessaram o oceano e tiveram participação pequena, mas decisiva no desfecho da guerra”, afirma.

“Nas escolas (da Itália) eles cantam o Hino da FEB. Eles são ensinados a continuar a reverenciando os feitos deles, coisas que não fazemos aqui”, lamenta Mariza. Ela frisa que manter a memória viva e o respeito aos símbolos nacionais deveria estar desassociado da política partidária. A professora diz que até mesmo entre os militares da ativa é necessário reforçar a importância do papel histórico dos pracinhas.

Lucidez e em atividade

Lúcidos, o capitão Elmo e o tenente Luiz dividem, além do fato de serem reconhecidos como heróis de guerra, a paixão pelo Grêmio e o hábito diário da leitura do Correio do Povo. Elmo, além da leitura do jornal, ainda a noticiários na televisão, joga canastra e bocha na Sociedade Esportiva Recanto da Alegria (SOERAL), na Redenção, além de preservar as tradições gaúchas. Ele chegou a fundar um Centro de Tradições Gaúchas na Bahia, onde morou, em 1965. Em 2006, o capitão recebeu o título de Cônsul Honorário do Rio Grande do Sul das mãos do então governador Germano Rigotto, com diploma emoldurado em sua sala de estar em posição de destaque. Elmo preside a Associação Nacional dos Veteranos da FEB.

Atualmente, os dois ex-combatentes, junto com o tenente Oudinot Villadino, 97, também pracinha morador de Porto Alegre, participam de cerimônias especiais do Comando Militar do Sul (CMS). Em fevereiro, os três estiveram na formatura alusiva à tomada do Monte Castelo, batalha vencida pela FEB em 21 de fevereiro de 1945, considerada estratégica e a mais importante travada pelas forças brasileiras em solo italiano. Além deles, outros 11 pracinhas ainda vivos residente no Rio Grande do Sul, espalhados por cidades como Pelotas, Alegrete, Bagé e São Leopoldo, entre outras, conforme o Censo Permanente da FEB.

Enquanto era fotografado junto ao Monumento do Expedicionário, que homenageia justamente os brasileiros que lutaram na Segunda Grande Guerra, o capitão Elmo foi reconhecido pelo coronel da reserva Henrique Antônio da Costa, que fazia exercícios na redenção. Costa fez questão de prestar continência ao veterano e apertar sua mão. “Tem que cumprimentar por tudo que eles fizeram por nós. O Brasil entrou no final da guerra, mas contribuiu com destaque para a vitória”, afirma.


Coronel da reserva fez questão de cumprimentar Elmo | Foto: Matheus Piccini

Covid também vencida

Além de voltarem de uma guerra, os dois ex-combatentes entrevistados também venceram a pandemia. O tenente Luiz não contraiu a doença após adotar medidas para evitar a contaminação com o vírus. A filha Mariza, com quem mora, garante que ele ficou recluso ao longo dos dois últimos anos. Já o capitão Elmo chegou a divulgar um vídeo em abril de 2020, afirmando estar se cuidando em rígida quarentena e pedindo que as pessoas ficassem em casa. A esposa Eunice, com quem está casado há 12 anos, diz que essa guerra contra a Covid-19 Elmo "tirou de letra", graças ao sistema imunológico fortalecido e ao preparo físico no Exército.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895