Cabul tenta retomar a vida entre temor e desconfiança do novo regime talibã

Cabul tenta retomar a vida entre temor e desconfiança do novo regime talibã

Poucas mulheres se arriscaram a sair de casa diante do monitoramento de radicais

AFP

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Aos poucos, Cabul começou a retomar a rotina, mesmo em meio a um cenário de temor e desconfiança por conta da presença maciça do Talibã no Afegnistão. As lojas reabriram as portas na capital afegã, o tráfego retornou, e as pessoas voltaram às ruas, enquanto os talibãs monitoram tudo em postos de vigilância. Poucas mulheres se arriscaram a sair de casa.

Alguns sinais mostram que a vida não será igual. Os homens trocaram suas roupas ocidentais pelo shalwar kameez - a vestimenta tradicional afegã -, e a televisão estatal exibe agora, principalmente, programas islâmicos.

Os talibãs intensificaram os gestos de apaziguamento para a população desde que entraram em Cabul no domingo (15), após uma ofensiva relâmpago. Em apenas dez dias, eles assumiram o controle de quase todo país, incluindo o palácio presidencial, abandonado por Ashraf Ghani, que fugiu para o exterior.

Nesta terça-feira, os insurgentes anunciaram uma "anistia geral" para todos os funcionários públicos, que receberam o pedido para "retomar sua vida cotidiana com total confiança".

Para muitos afegãos, no entanto, será difícil ter confiança. Quando governaram o Afeganistão, entre 1996 e 2001, os talibãs adotaram uma versão extremamente rigorosa da lei islâmica. As mulheres não podiam trabalhar, nem estudar. Os acusados de roubo e de assassinato enfrentavam punições terríveis.

"As pessoas têm medo do desconhecido. Os talibãs patrulham a cidade em pequenos comboios. Não incomodam ninguém, mas com certeza as pessoas estão com medo", disse à AFP um comerciante em Cabul.

Apesar das mensagens dos talibãs, algumas informações sugerem que eles continuam procurando autoridades governamentais. Uma testemunha relatou que homens invadiram a casa de um funcionário, que foi levado à força.

Voos de retirada

Em um discurso muito aguardado, Joe Biden defendeu a retirada das tropas americanas do Afeganistão, onde os militares entraram há 20 anos para expulsar os talibãs do poder. "Estou profundamente entristecido com os acontecimentos, mas não me arrependo da decisão" afirmou.

O presidente americano repetiu que a missão de Washington nunca foi construir uma nação democrática em um país instável, e sim "impedir um ataque terrorista em território americano".

O governo dos Estados Unidos decidiu intervir no Afeganistão em 2001, após a recusa dos talibãs de entregarem o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, depois dos atentados do 11 de Setembro.

"As tropas americanas não podem, nem devem lutar e morrer em uma guerra que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si mesmas", disse Biden, antes de reconhecer que o governo afegão caiu "mais rápido" que o previsto.

O triunfo dos talibãs provocou cenas de pânico e de caos no aeroporto de Cabul na segunda-feira (16), para onde milhares de pessoas correram desesperadas, em uma tentativa de fugir do país. Imagens que o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, chamou nesta terça de "vergonha para o Ocidente".

Vídeos nas redes sociais mostram centenas de pessoas correndo ao lado de um avião militar americano a ponto de decolar, enquanto alguns agarravam a lateral, ou as rodas da aeronave.

O governo dos Estados Unidos enviou 6 mil soldados para garantir a segurança do aeroporto e a retirada de quase 30 mil americanos e colaboradores civis afegãos. Espanha, Alemanha, França, Holanda, Reino Unido e outros países tentavam acelerar nesta terça-feira a repatriação de seus cidadãos.

Biden ameaçou os talibãs com uma resposta militar "rápida e contundente", caso interrompam as operações de retirada. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) pediu que os países proíbam as expulsões de cidadãos afegãos para seu país de origem.

Imagem abalada

A reação da comunidade internacional ainda deve ser observada. Washington anunciou que apenas reconhecerá um governo talibã no Afeganistão se este respeitar os direitos das mulheres e adotar um distanciamento de movimentos extremistas como a Al-Qaeda. A Alemanha anunciou a suspensão da ajuda ao desenvolvimento para o Afeganistão.

A China foi o primeiro país a anunciar, ainda na segunda-feira, declarando que deseja manter "relações amistosas" com os talibãs. Rússia e Irã também fizeram gestos de abertura. A Turquia elogiou o que chamou de "mensagens positivas" dos talibãs.

Washington - que registrou 2.500 mortes e uma conta de mais de US$ 2 trilhões com a guerra no Afeganistão - sai com a imagem profundamente abalada e recebeu fortes críticas de seus aliados europeus. A ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, pediu à Organização do Tratado do Atlântico Norte que aprenda a lição do fracasso no Afeganistão. A Otan fará uma reunião de emergência nesta terça-feira.

O ministro britânico da Defesa, Ben Wallace, citou o "fracasso da comunidade internacional", enquanto a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse que a intervenção no Afeganistão "não foi tão frutífera" como se esperava. O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que o Afeganistão "não deve voltar a ser o santuário do terrorismo que já foi" e pediu uma "resposta (internacional) responsável e unida".

Para muitos analistas, porém, embora os talibãs tentem apresentar mais prudência em suas relações com a Al-Qaeda, os dois grupos continuam estreitamente vinculados. "O que está acontecendo no Afeganistão é uma vitória clara e veemente para a Al-Qaeda", avalia o diretor de pesquisas do "think tank" Soufan Center, Colin Clarke, para quem o grupo pode aproveitar para atrair recrutas e criar uma nova dinâmica. 


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