Pela 1ª vez, Tribunal Europeu de Direitos Humanos aceita caso sobre direito parental de transexuais

Pela 1ª vez, Tribunal Europeu de Direitos Humanos aceita caso sobre direito parental de transexuais

Queixa é de mulher impedida pela Suprema Corte da Rússia de ver filhos, por juízes considerarem que situação pode causar "danos irreparáveis ​​à saúde mental" das crianças

Eric Raupp

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Pela primeira vez em seus 60 anos de existência, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) aceitou um caso sobre direitos parentais de uma transsexual, a qual fo impedida de ver os filhos após a troca de sexo, revelou o jornal Kommersant, nesta segunda-feira. A queixa foi enviada, em setembro, por uma cidadã russa com o sexo masculino designado no nascimento e foi casada com uma mulher com a qual teve dois filhos. Após o divórcio, em 2015, a requerente passou por uma operação de mudança de sexo, e a ex-esposa a proibiu de entrar em contato com as crianças, afirmando que a convivência prejudicaria o desenvolvimento psicológico e moral delas. O tribunal russo confirmou a posição e impediu completamente a requerente de ver ou entrar em contato com seus filhos.

De acordo com advogada Tatiana Glushkova, do Projeto de Assistência Jurídica para Pessoas Transgêneros, a queixa foi apresentada ao TEDH em 4 de setembro de 2019, sendo aceita para consideração no final de novembro. A decisão da Corte, cuja missão é garantir o respeito dos princípios da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, deve abrir um precedente legal para todos os 47 países do Conselho da Europa, uma vez que é a primeira vez que o tema será julgado.

A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adotou, em 10 de outubro de 2018, uma resolução sobre as chamadas "famílias arco-íris". Foi a primeira vez que a Assembleia abordou a situação e instaou os Estados membros a "prever que a identidade de gênero dos pais transgêneros seja corretamente registrada na certidão de nascimento de seus filhos e garantir que as pessoas que usam marcadores legais de gênero que não sejam homens ou mulheres possam ter suas parcerias e relacionamentos com seus filhos reconhecidos sem discriminação".

O caso enviado ao TEDH

A requerente nasceu em 1972 como um homem "geneticamente e fenotipicamente", de acordo com os documentos. Em 2008, A. M. (nomes completos não são informados no caso, apenas as iniciais), casou-se com uma russa chamada N.V. Em 2009, tiveram um filho e, em 2012, uma filha. Em 2015, os pais se separaram, e A.M. iniciou a transição. Dois anos mais tarde, N.V. apelou ao tribunal russo com a exigência de limitar os direitos parentais de A.M.

Segundo os documentos, N.V acreditava que as informações sobre a transição poderiam "causar danos irreparáveis ​​à saúde mental e à moralidade das crianças", além de provocar bullying na escola. Ela também se referiu à lei Russa de 2013 sobre "propaganda gay". O Tribunal Lyublinsky, em Moscou, que recebeu a ação, exigiu vários exames na mulher trans e nos filhos do casal, incluindo testes psicológicos, psiquiátricos e sexuais. Eles foram conduzidos pelo Instituto Serbsky, considerada a capitânia psiquiátrica do controle político punitivo soviético.

Os resultados saíram em março de 2018, e os especialistas indicaram que não estavam familiarizados com nenhuma pesquisa realizada na Rússia que tratasse sobre a questão Rússia. Ainda apontaram que todas as experiências realizadas no exterior não eram confiáveis ​​- elas apontam que filhos de pais transgêneros não sofrem efeitos negativos quando comparados à outras crianças. Como resultado, eles chegaram na conclusão de que a divulgação da situação da transição transgênero de A. M. teria um impacto negativo.

A advogada recorreu e pediu uma revisão científica do exame do Instituto Serbsky ao Tribunal de Lyublinsky – que reservou apenas dois dias para ele fazer isso: um sábado e um domingo. Ela não pôde completar a tarefa em tempo e os direitos parentais de sua cliente foram limitados. O tribunal enfatizou que não duvidava dos sentimentos de A.M. por seus filhos, mas achou que qualquer conversa real com eles era desaconselhável. A decisão também observou que a proibição poderia ser reconsiderada "de acordo com o amadurecimento das crianças e as futuras mudanças no nível de seu desenvolvimento psicológico".

Revisão não foi aceita

Com a sentença, a mulher interpôs um recurso, analisado três meses depois pelo Tribunal da Cidade de Moscou. Uma revisão foi preparada pelo psiquiatra-chefe do departamento de psicologia médica da Universidade Médica de Kazan, Vladimir Mendelevich. Conforme o documento, obtido pelo jornal Kommersant, o psiquiatra apontou a ausência de evidências científicas para a decisão, afirmando que o  Instituto Serbsky embasava suas conclusões em apenas uma publicação de 2012.

Trata-se do artigo "Quão diferentes são os filhos adultos de pais que têm relações homossexuais? Resultados do novo estudo de estruturas familiares", do sociólogo da Universidade do Texas Mark Regnerus. No texto, ele aponta "diminuição do bem-estar entre crianças que moravam em famílias onde os pais tinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo". O Tribunal de Moscou se recusou a considerar a revisão de Mendelevich e afirmou a decisão do Tribunal de primeira instância. A Suprema Corte da Rússia fez o mesmo.

Acionamento do TEDH

Amparada pelo Projeto de Assistência Jurídica para Pessoas Transgêneros, A.M. solicitou que seu caso fosse julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. De acordo com o Kommersant, ela concordou que seus filhos ficariam chocados quando soubessem de sua transição, mas argumentou que logo se acostumaria. "Em toda parte, o problema de 'como contar às crianças' foi artificialmente exagerado. Na verdade, não é tão complicado. Por exemplo, por que não dizer: 'Sabe, esse tipo de coisa é rara, mas acontece - um menino nasceu com a alma de uma garota. Foi muito ruim para ele, mas quando ele teve a chance, ele foi ao consultório médico e eles o ajudaram a se tornar uma menina", disse à publicação.

Quando perguntada sobre como ela explicaria sua ausência aos filhos, ela não conseguiu responder, mas observou que, durante as conversas do filho com os especialistas do Instituto Serbsky, ele disse: "Papai nos abandonou". Tatiana Glushkova argumenta que as crianças descobrirão o que aconteceu com sua família, mais cedo ou mais tarde, e, independentemente de como reajam à transição, não poderão mudar o fato de que um dos pais esteve ausente durante a infância. 

A advogada tem esperança de que o TEDH decida sobre a reclamação dentro de um ano "porque todo mundo entende que a questão da reunião de filhos e pais deve ser decidida o mais rápido possível". Contudo, de acordo com a própria Corte, não é possível indicar o tempo que demorará em média para examinar uma queixa. Depende do tipo de queixa, da formação judicial que a analisa, quão rapidamente as partes fornecem as informações de que necessita e outros fatores. 

Alem disso, o Tribunal examina as queixas numa determinada ordem, que tem em conta a importância e a urgência das questões levantadas. Isto significa, por exemplo, que os casos mais sérios ou aqueles que revelam a existência de problemas em larga escala terão prioridade.

Decisão pode não ser respeitada

Em 14 de julho de 2015, o Tribunal Constitucional da Rússia decidiu que suas leis nacionais devem ter precedência sobre as decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. A decisão essencialmente concede à Rússia o direito de ignorar os julgamentos do tribunal de Estrasburgo, caso não sejam considerados adequados. "A participação da Rússia no acordo internacional não significa rejeição da soberania do Estado", disse o presidente da Corte, Valery Zorkin, na ocasião.

Se alguma decisão do principal tribunal de direitos humanos da Europa violar a lei russa, Moscou não deve seguir essa decisão "à risca", disse o documento. Zorkin argumentou que a decisão estava alinhada com a prática de tribunais superiores de membros da União Européia, como Alemanha, Itália, Áustria e Grã-Bretanha. As autoridades russas há muito argumentavm que a prática atual de dar precedência ao direito internacional sobre o direito russo é contra os interesses do país. O porta-voz do presidente Vladimir Putin afirmara à época que a decisão foi final.


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