Brasil perde 19 crianças por dia vítimas de violência, aponta estudo

Brasil perde 19 crianças por dia vítimas de violência, aponta estudo

Pesquisa revela que 35 mil crianças e adolescentes morreram nos últimos cinco anos. Mortes de crianças até 4 anos crescem 27%

R7

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A tia de Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, morto e torturado por policiais militares no bairro da Vila Clara, na zona sul de São Paulo, sente pânico toda vez que o irmão do rapaz, Gustavo, sai de casa para ir ao mercado. “Tento mantê-lo perto de mim a maior parte do tempo”, diz Andreza da Silva Noronha, de 37 anos. Para Luciangela dos Santos, 48 anos, que perdeu a neta de 3, vítima de violência sexual e doméstica, o medo e a lembrança surgem sempre que vê uma criança sozinha com um adulto dentro de casa.

Em comum, Andreza e Luciangela têm o fato de terem perdido o sobrinho e a neta para a violência letal no Brasil. Guilherme e Sophia fazem parte do contingente de 35 mil crianças e adolescentes mortos de forma violenta no país nos últimos cinco anos. Isso representa uma média de 7 mil por ano ou 19 crianças e jovens que perdem suas vidas a cada dia.

Os números fazem parte do Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, divulgados nesta sexta-feira (22), pelo Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Das 35 mil mortes violentas registradas, mais de 31 mil tinham entre 15 e 19 anos. O número caiu de 6.505 em 2016 para 4.481 em 2020.

Entretanto, o percentual de crianças com até 4 anos vítima de violência letal aumentou. No período pesquisado, houve um crescimento de 27% no percentual de mortes violentas para essa faixa etária. “Muitos países não têm um número total de homicídios equivalente ao que o Brasil possui para essa parcela da população. Isso revela um nível de exposição de crianças e adolescentes assustador”, afirma Danilo Moura, oficial de monitoramento e avaliação do Unicef no Brasil. “Isso é a ponta do iceberg ao pensarmos no total de crianças que sofrem violências que não terminam em morte.”

Por trás dos números das mortes, ressalta Moura, existem mães, pais, tios, tias, irmãos, avôs e avós que são vítimas indiretas dessas tragédias. “Quando olhamos o todo, percebemos que os impactos recaem sobre os sobreviventes, os familiares, os territórios onde viviam essas pessoas e a comunidade. É uma cadeia de perdas e um ciclo de consequências assustador.”

Segundo a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Sofia Reinach, os crimes têm diferentes características a depender da idade da vítima. “Até os nove anos eles têm maior igualdade de sexo, raça e cor e ocorrem mais dentro das residências”, afirma. “A partir dos 10 anos, esses crimes passam a ocorrer em vias públicas. Quanto maior a faixa etária, maior o percentual de mortes causadas por arma de fogo e de agressores desconhecidos.”

O advogado especializado em Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, afirma que o Brasil é reconhecido mundialmente pela violência contra essa faixa etária. “Apesar de ter uma das legislações mais avançadas do mundo, o ECA, o país não cumpre o estatuto e não garante a proteção integral prevista na Constituição Federal”, diz. “Há uma grande distância entre a legislação e a prática, principalmente, para crianças pobres e negras que moram em áreas periféricas e rurais.

Onde mora o perigo

No dia 5 setembro de 2017, a professora Luciangela dos Santos, de 48 anos, foi chamada às pressas a um hospital da zona leste de São Paulo. Somente após duas horas de espera ela recebeu dos médicos a notícia de que a neta Sophia Masukato Granjeiro, de 3 anos, havia morrido, vítima de um espancamento e de abuso sexual. “Ela estava com hematomas, mas o padrasto teria maquiado os ferimentos para os médicos e enfermeiros não perceberem”, afirma. “Não quis ver como ela estava, mas minha família disse que ela tinha uma mancha na testa. O laudo constatou que ela teve quatro costelas quebradas após ter sido espancada com um pedaço de pau”, diz.

Além disso, segundo Luciangela, os médicos constataram a presença de sêmen nas roupas da criança. “Na hora, eu pensei que eles tinham sofrido um acidente de carro, jamais imaginaria isso. Nunca percebi que ela poderia estar sendo maltratada”, afirma. A avó conta que a mãe de Sophia trabalhava no período da noite como recepcionista e que o padrasto estava desempregado. “Quando ela nasceu eu tinha muito contato com ela, mas depois quando a mãe começou a se relacionar com o padrasto fomos nos afastando. Entre os anos 2016 e 2020, foram identificadas 1.070 mortes violentas de crianças até os 9 anos. Somente no ano passado, 213 crianças mortas com violência nessa faixa etária.

O estudo demonstra um aumento de mortes violentas contra crianças com até 4 anos, o que acende um alerta para governos e autoridades por se tratar da primeira infância. Os casos cresceram 27% nos quatro anos pesquisados. Em relação aos crimes de violência sexual, a pesquisa mostrou que foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos, uma média de 45 mil casos por ano.

A grande maioria das vítimas de violência sexual é composta por meninas entre 10 e 14 anos. No caso dos meninos, o crime sexual ocorre entre 3 e 9 anos. “Isso tem relação com uma tradição de machismo, de violência contra as mulheres e crianças que acaba sendo favorecida pela falta de aplicação das legislações, pela ausência de órgãos responsáveis pelo cumprimento das leis”, afirma Alves.

Segundo o advogado, o estado de São Paulo não tem uma delegacia especializada para prestar atendimento a crianças e adolescentes. “Muitas vezes há dificuldades para o exame de corpo de delito, para se deslocar de suas casas até o local. É preciso lembrar que existem abusos e atos libidinosos que não deixam lesões. Algumas experiências, como a escuta protegida desse público, ainda são muito isoladas”, afirma. “Quem deveria proteger acaba se tornando o algoz. As crianças mais novas são muito mais dependentes de seus familiares e permanecem mais tempo em casa.”

Quatro anos após a morte de Sophia, Luciangela diz que se lembra da menina todos os dias. “Até dando aula não consigo me esquecer. Quando chega a data de aniversário ou o dia das crianças eu desabo”, afirma. “A gente tenta enfrentar o dia a dia, mas não se esquece. Se eu pudesse dar um conselho para familiares de crianças pequenas seria: não levem seus filhos para morar com pessoas desconhecidas.” Em 2020, ano marcado pela pandemia, houve uma queda nos registros de violência sexual. Segundo o estudo, foram 40 mil registros na faixa etária de até 17 anos em 2017 e 37,9 mil em 2020. Entretanto, a queda dos registros ocorreu entre março e maio do ano passado, o que revela um provável aumento de subnotificação.

Violência urbana

O estudo demonstra ainda que para os meninos, a faixa etária dos 10 aos 14 anos, marca a transição da violência doméstica para a urbana. Nessa idade, segundo Sofia, a pesquisadora do Fórum, passam a predominar as mortes fora de casa, por arma de fogo e autor desconhecido. Já na faixa etária dos 15 aos 19 anos a violência letal está consolidada, aponta o relatório: 90% das vítimas são meninos e 80% dão negros.

Embora o número de mortes para essa faixa etária tenha caído de 6.505 em 2016 para 4.481 em 2020, o patamar é considerado muito elevado. “Há uma quantidade muito grande de mortes por dia, um número sem comparação com o restante do mundo”, afirma Moura, do Unicef.

Reprodução / Record TV / CP

Segundo ele, as polícias precisam receber treinamentos mais adequados para abordar adolescentes. “Os agentes precisam ter procedimentos diferentes dos utilizados na abordagem para adultos. A postura deve evitar o conflito e as polícias devem ser treinadas para isso, não somente para respeitar os direitos deles, mas para lidar com as especificidades relativas à idade.”

Não foi o que ocorreu no caso de Guilherme, morto e torturado por policiais na zona sul de São Paulo. “É uma dor muito grande perder alguém dessa maneira. Ficamos muito assustados, qualquer carro de polícia que passa rondando já ficamos com medo”, afirma Andreza, tia do garoto. A profissional autônoma tem dois filhos, de 20 e 18 anos, e diz que passa o dia mandando mensagens para saber onde estão. “Meu filho faz entregas por aplicativo. Fico a todo momento querendo notícias para saber se ele está bem.”

A avó de Guilherme não sai mais de casa com medo de uma eventual retaliação da polícia. “Ela sente a falta dele, principalmente, nas datas comemorativas ou quando mexe no celular e vê uma foto. Sentimos muito medo de que isso se repita com o irmão dele, que também está com 15 anos.”

Em 2020, o estudo apontou um total de 787 mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos em decorrência de intervenção policial. O número representa 15% do total de mortes para essa faixa etária e indica uma média de mais de duas mortes por dia no país. “É um número altíssimo, em países europeus e nos EUA esse percentual não passa de 3%. Temos uma das maiores letalidades policiais do mundo. Nos últimos anos, a vulnerabilidade social se ampliou, as desigualdades também bem como o acesso às armas de fogo no país”, afirma Alves.

Proteção e gargalos

Os números de violência letal contra crianças e adolescentes apontam diversos gargalos em relação às políticas públicas desenvolvidas para essas faixas etárias. “Temos alguns desafios pela frente: é preciso investir em assistência social, conselhos tutelares e na capacitação de pessoas que trabalham com essa parcela da população”, afirma Moura. Segundo o oficial do Unicef, crianças ainda não têm condições de se expressar para se defender ou pedir ajuda. “As instituições têm a função de protegê-los. Adultos, professores e assistentes sociais precisam ser treinados para oferecer uma escuta humanizada."

Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, a prevenção das diversas formas de violência deve ocorrer nas escolas, centros de referência de crianças e do adolescente e conselhos tutelares. “Mas, atualmente, os centros não dão conta de atender essa faixa etária porque trabalham com demandas voltadas a outras populações vulnerabilizadas", explica ele. "Além disso, com o período em que os serviços públicos e as escolas que ficaram suspensos houve um aumento da exposição de crianças e violências.”

De acordo com a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, muitos desses casos podem ser identificados antes de terminarem em morte. "Os indícios podem ser percebidos por pais, familiares e professores. Mas também é preciso ampliar o conhecimento de meninas e meninos sobre os comportamentos aceitáveis ou não aceitáveis. Mas, enquanto as políticas públicas e a prevenção não avançam, Andreza e Luciangela ainda buscam formas de lidar com a dor e a lembrança de não terem mais o sobrinho e a neta por perto. "Quando a gente fala sobre isso revive tudo de novo. É uma tristeza muito grande saber que morre muita criança no Brasil."


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