Castelo de Pedras Altas guarda o imaginário da construção da paz no Rio Grande do Sul

Castelo de Pedras Altas guarda o imaginário da construção da paz no Rio Grande do Sul

Propriedade de Assis Brasil, líder dos revolucionários em 1923, sediou a assinatura do tratado que colocou fim à guerra entre chimangos e maragatos. Um século depois segue repleta de pedaços da história brasileira e gaúcha

Angélica Silveira

Castelo de Pedras Altas

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Os principais fatos da história normalmente são identificados pelos pontos de partida e chegada. E neste caso o fim da Revolução de 1923 não poderia ter ocorrido em um local mais emblemático. A quase 400 quilômetros de distância de Porto Alegre, fica o Castelo de Pedras Altas. O nome não é uma metáfora. Pelo contrário. Realmente é um castelo erguido dentro de uma propriedade rural, no distrito com mesmo nome, que já fez parte do município de Pinheiro Machado, em uma época na qual o Estado vivia tempos sangrentos. Mas, para além do simbolismo estético, era o seu proprietário que sempre despertou atenção. Se Borges de Medeiros tinha o seu quartel general em Porto Alegre, o castelo era o de seu adversário político: Joaquim Francisco de Assis Brasil. Foi neste local, entre as suas firmes e fortes paredes, em uma imponente sala, em uma mesa de madeira com um abajur e cercada de apoiadores, como registrado em uma fotografia presa à parede, que Assis Brasil assinou aquele que viria a ser o Tratado de Pedras Altas. O documento da paz, que colocaria fim ao duelo sangrento que dividiu os gaúchos em chimangos e maragatos na última guerra armada do Rio Grande do Sul.

Um dos espaços mais enigmáticos do castelo é a biblioteca | Foto: Ricardo Giusti

Mesmo depois de um século, completado exatamente neste 14 de dezembro de 2023, a aura do local segue viva. Ao contrário de sua estrutura, é verdade. Algumas infiltrações no telhado, que já passaram pelos primeiros reparos, poeira sobre a mobília e o reboco descascado das paredes são sinais de que a ação do tempo se mostrou presente. Mas nada que afaste o entusiasmo do presidente da Associação do Castelo de Pedras Altas, o advogado Luiz Carlos Segat, que revive, durante as visitas ou ao apresentar o local a um visitante, a história tanto da Revolução de 1923 como do próprio Assis Brasil. “Não havia como não se apaixonar pela atmosfera e pela história”, admite. Apesar de a aquisição da propriedade pelos seus três filhos ter sido concluída em fevereiro de 2021, o advogado reconhece que ainda há muito a ser explorado e a ser encontrado. E não teria como ser diferente. Assis Brasil, um dos principais personagens da Revolução de 1923, não é apontado pelos historiadores como um revolucionário “militar”, mas “político”.

Fachada do Castelo de Pedras Altas | Foto: Ricardo Giusti

Além disso, sua paixão pela agricultura o tornou o patrono da agricultura no Rio Grande do Sul. De quebra, o aguçado gosto pela literatura fez com que tivesse uma biblioteca de dar inveja, com obras raras, primeiras edições de clássicos e até uma das primeiras enciclopédias escritas no mundo, segundo Segat, entre os anos de 1741 e 1746. A quantidade de itens ainda divide opiniões. Talvez sejam 15 mil ou 21 mil exemplares. Talvez os atuais projetos e parcerias envolvendo o restauro de documentos históricos e outros de recuperação de livros, móveis e quadros consigam decifrar mais esse segredo. Itens esses que fazem com que o interior do castelo represente uma viagem no tempo.

Fotografia exposta é a da assinatura do Tratado de Paz, em 14 de dezembro de 1923 | Foto: Ricardo Giusti

São as dezenas de fotografias distribuídas pelo local que ajudam ainda a construir um pouco do perfil desse líder revolucionário. Diplomata, há registros dele com reis e presidentes, além de objetos que ele adquiriu ao longo de suas viagens, como o relógio de parede de Bento Gonçalves e um sabre de marfim que ganhou de um imperador chinês. Essa decoração própria pode fazer com que o espaço seja um verdadeiro museu particular.

Algumas características na própria construção remetem aos conflitos. Um dos pontos mais enigmáticos são as escadas que levam ao terraço, pois são estreitas, com o teto rebaixado para que no caso de alguma invasão, fosse impedisse a entrada a cavalo e que só se permitisse a passagem de uma pessoa por vez, repetindo a estratégia utilizada em castelos para facilitar a defesa. Além disso, é possível que nem todo o restauro consiga apagar alguns rastros. Por exemplo, logo na entrada é possível ver nas paredes do castelo duas marcas de tiros de fuzil.

Sala interna do Castelo de Pedras Altas | Foto: Ricardo Giusti

Ou ainda uma vidraça quebrada, mostrada com orgulho por Segat. Segundo ele, após a assinatura do pacto de paz, os apoiadores de Borges de Medeiros tentaram entrar no local e quebraram os vidros. Quando voltou do Uruguai, onde se refugiou após o fim da guerra, Assis Brasil impediu que fosse feito o conserto. Assim, foram mantidos os vidros quebrados por trás dos novos. “Ele dizia que todo o castelo tem que manter as suas cicatrizes”, enfatiza Segat. Talvez seja exatamente por isso que preservar a história tenha se tornado tão importante para a neta de Assis Brasil, Lydia Costa Pereira, hoje com 68

anos, que morou no castelo entre 1999 a 2018. Ela precisou deixar o local diante das dificuldades de manutenção da grande estrutura. “Tentei, mas não consegui”, confessa.

A tarefa de manter em pé a propriedade estava longe de ser fácil, uma vez que só o castelo demorou quase cinco anos para ficar pronto. Afinal, ele tem 44 cômodos, pouco mais de 1.170 metros quadrados de área construída em três andares, além de duas torres, sendo uma com seis andares e outra com cinco, com uma estrutura em granito rosa, tirado da própria propriedade. A construção que buscava ser uma homenagem à sua segunda esposa, tornou-se o refúgio da família e o berço para as seguintes gerações assisistas.

O ar enigmático que a propriedade ainda emite é reforçada por aqueles que ainda vivem nas proximidades, como o produtor rural Carlos Hofmeister Neto. “Eu vejo o Castelo como fundamental. Pedras Altas se manteve pós-ferrovia muito em função da história. Obviamente tinha algo a mais aqui que é o Castelo, além do legado de Assis Brasil. É um espaço que é pura história. É importante para a história do Brasil”, declara.

Fato é que o próprio Assis Brasil escolheu a propriedade para viver depois de deixar a política, dedicando-se ao campo, e passando lá os últimos anos de sua vida.

Embrião da Justiça Eleitoral brasileira

A ideia de um castelo pode remeter mais ao conceito de preservação do passado em contraposição a projetar o futuro. Ledo engano. O mesmo local que celebrou o fim da guerra também pode ser considerado o embrião da Justiça Eleitoral brasileira, que nasceria efetivamente uma década depois, em 1932. Isso porque o documento assinado em Pedras Altas colocou fim à Revolução de 1923, que começou exatamente por causa de acusações, das mais diversas de fraudes no processo eleitoral. À época, o movimento se formou do não reconhecimento da vitória de Borges de Medeiros para o seu terceiro mandato consecutivo no governo pelos revolucionários, liderados por Assis Brasil, pelas acusações de fraudes.

Segundo o historiador Gunter Axt, naquela época as fraudes aconteciam das mais diversas formas. “Mesas eleitorais que eram controladas pela ‘situação’, eleitores que votavam várias vezes, ‘os mortos’ que votavam, crianças. Enfim, tudo acontecia nessas eleições no período da República Velha”, recorda. Ao mesmo tempo, não existia a figura de um “tribunal arbitral”, que atuasse no processo de maneira mais isenta. Isso porque o processo de apuração, à época, de acordo com a Constituição em vigor, previa que cabia ao parlamento a apuração das eleições, que tendiam a favor da situação nos governos.

Assim, o pacto que termina com a guerra reconhece, segundo Axt, de certa forma, o protagonismo da Justiça no que se refere ao processo eleitoral. “O pacto sinaliza que uma revolução poderia ser parcialmente vitoriosa no Brasil no que se refere a mudanças institucionais importantes”, cita, fazendo referência a uma das principais cláusulas do pacto foi de que Borges não poderia concorrer a reeleição.

Será nesse processo, que anos depois, Assis Brasil apoiará a candidatura de Getúlio Vargas à presidência, contando que ocorressem mudanças no processo eleitoral. Dois anos após ó início da Revolução de 1930, nasce o Código Eleitoral. O sistema traria modificações, como a criação da Justiça Eleitoral, a instituição do voto feminino e o voto secreto. Na verdade, será o Código que irá eternizar na história brasileira o mesmo Assis Brasil, que não conseguiu governar o Rio Grande do Sul, mas que deixou um legado para o país e se tornou o patrono da Justiça Eleitoral brasileira.

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