Gestores gaúchos criam fatos políticos, mas não possuem plano alternativo de vacinação

Gestores gaúchos criam fatos políticos, mas não possuem plano alternativo de vacinação

Governo do Estado e prefeituras tentam evitar o desgaste enquanto, na prática, aguardam pelo cronograma do Ministério da Saúde

Flavia Bemfica

Vacina contra a Covid-19 deve entrar para o Programa Nacional de Imunizações

publicidade

Em uma situação que se repete país afora, a população do RS acompanha com expectativa o desenrolar da disputa política na qual se transformou a existência de vacinas contra o coronavírus, na esperança de que possa ter acesso aos imunizantes rapidamente. Por enquanto, contudo, a realidade para os 11,5 milhões de gaúchos é outra. Porque, apesar de anúncios e movimentos que concedem visibilidade política, na prática nem o governo do Estado e nem prefeituras do RS até agora apresentaram projetos alternativos ao que vem sendo anunciado pelo governo federal.

Em resumo, enquanto o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), informou que terá no próximo mês 46 milhões de doses da vacina Coronavac e anunciou o início da imunização naquele estado para 25 de janeiro, o RS aguarda pelas definições do Ministério da Saúde e não tem até o momento um plano concreto de compra direta de algum dos imunizantes. Isto significa que, se nada mudar, não haverá vacina em escala em solo gaúcho fora do que vier a ser estabelecido dentro do Plano Nacional de Imunizações (PNI), ainda com data incerta de início entre o final de fevereiro e o começo de março, e que deve se estender por todo o ano de 2021. Muito além, por exemplo, do início do ano letivo, em março.

Atento ao desgaste que a dianteira tomada por Dória provoca tanto sobre o governo federal como sobre os chefes dos executivos estaduais, desde a semana passada o governador Eduardo Leite (PSDB) se movimenta no sentido de diminuir o prejuízo político. Na terça, antes e depois da tensa reunião de governadores com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, Leite informou possuir o que foi denominado de um ‘plano B’, de adquirir a vacina Coronavac diretamente do Instituto Butantan caso o governo federal “retarde a tomada de uma decisão”. Em uma intensiva de entrevistas ou citações em veículos de comunicação nacionais, acompanhada de uma live para “tranquilizar a população”, porém, Leite fez questão de salientar sempre sua confiança de que o Ministério da Saúde tomará a frente do processo de imunização.

E, em um momento no qual seu nome voltou a ser ventilado nacionalmente como uma alternativa à Dória dentro do PSDB na disputa presidencial de 2022, fez críticas diretas e indiretas ao colega paulista. “Não faz nenhum sentido que cada Estado, cada município, estabeleça uma política própria para disputarmos entre nós as vacinas. O Brasil tem um Programa Nacional de Imunizações e ele é o melhor caminho”, opinou, durante a manifestação pelas redes sociais. Em outro momento, falando sobre os prazos, projetou: “O calendário que São Paulo apresentou não é necessariamente exequível se não houver autorização do registro da Anvisa.” Deixou de fora o fato de que Dória e outros governantes cogitam a aplicação da Lei 14.006, de 28 de maio de 2020, que prevê brechas para administração de vacinas que tenham obtido registro em uma das quatro agências que são referência internacional: as dos Estados Unidos, Europa, Japão ou China.

Na prática, o que vem sendo denominado de ‘plano B’ do governo estadual é a manifestação de interesse do RS (e de mais sete estados) de adquirir diretamente do Butantan parte das 4 milhões de doses que Dória já anunciou que disponibilizará para outros estados e cidades interessados fora de São Paulo. As doses são para imunização exclusiva de profissionais da saúde. Independente do critério numérico utilizado, caso a ação se confirme, ao RS não deverão sobrar muito mais do que poucas centenas de milhares de doses, em um cálculo muito otimista.

“O Paraná e a Bahia tentaram fazer alguns movimentos. E São Paulo fez. Então, a pergunta é: por que, ante todo o histórico recente, os governadores não se organizaram antes, ao invés de aguardarem por movimentos do governo federal? Por que não montaram uma frente? A região Sul poderia ter se organizado tanto para montar um cartel de produção de vacinas público ou em parceria com a iniciativa privada; como para estabelecer um fundo para adquirir os imunizantes. Só que é preciso ter liderança para fazer isso”, aponta o professor Luis Gustavo Grohmann, do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs. “Fica claro que Leite e outros governadores temem neste momento a cobrança da população e eu não projetaria em uma diminuição da politização no país no curto prazo. Porque, como existem vários laboratórios ‘correndo’ para formular a vacina, quem desejar politizar a questão, vai conseguir fazer isto”, completa o professor de Políticas Públicas e de Ciência Política da Ufrgs, Sergio Simoni Júnior.

O vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães, diz que a projeção existente no início da pandemia, de que, em função de toda sua estrutura, o Brasil estaria muito bem situado para a vacinação, agora não existe mais, e a imunização foi contaminada totalmente pela política. “Primeiro o governo federal começou a atrapalhar tudo de cima para baixo, e há responsabilidade evidente do presidente da República. O Ministério da Saúde se atrasou, fez corpo mole. E o governador de São Paulo não é nenhum inocente. A confusão foi se disseminando e agora estamos frente a um cenário de guerra entre os estados”, critica. O dirigente chama a atenção ainda para o fato de que, ao contrário do que se deu com o isolamento social, em que cada governante determinou regras próprias a partir da omissão do governo federal, no caso da vacina a situação é mais complexa. “Não há competição sobre o isolamento. Mas a vacina é um produto limitado e que alça a população a uma outra condição”, resume.

Nas prefeituras

Da mesma forma que Leite, prefeitos gaúchos, vários de oposição ao governo federal, também passaram a se movimentar para fazer crer que não estão inertes na corrida pela vacina. Mas, também como ocorre com o governo estadual, os movimentos, apesar de diminuírem o desgaste político, têm pouco efeito concreto no curto prazo para o que de fato interessa: garantia de doses para uma parcela expressiva da população. Nesta quinta-feira uma comitiva integrada pelo presidente da Famurs, Emanuel Hassen (PT), e pelos prefeitos de Esteio, Leonardo Pascoal (PP), e de São Leopoldo, Ari Vanazzi (PT), terá audiência com o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, às 14h, em São Paulo.

Pascoal viaja representando o Consórcio de Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal), que idealizou a ação de formar um consórcio que possa adquirir doses diretamente do Butantan caso haja atraso por parte do governo federal. “A princípio vamos aguardar pelo Ministério da Saúde. Mas a ideia é que saibamos o que o Butantan tem de doses disponíveis, porque começar a vacinação em março, se a vacina está pronta, é tarde. O mais difícil era fazer a vacina, agora é necessário agilidade. Vamos buscar as informações sobre doses, preços e como fazemos para assinar um protocolo de intenções”, elenca a presidente da Granpal e prefeita de Nova Santa Rita, Margarete Ferretti (PT).

Depois da visita a São Paulo, a Granpal decidirá, na semana que vem, se assina ou não um protocolo de intenções com o Butantan. Na prática, já será metade de dezembro quando a entidade vai se manifestar sobre o interesse em possíveis futuras doses. Segundo Ferretti, o prefeito eleito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), fez contato para obter informações e mostrou interesse em participar de um eventual consórcio. Melo cita genericamente a possibilidade de formação de um consórcio desde a campanha, mas sempre atrelada a inexistência de um programa federal. E, até agora, também não apresentou qualquer plano ou projeção sobre como pretenderia efetuar compra direta caso entendesse que ela é necessária. Internamente, articuladores da transição de governo em Porto Alegre asseguram que o emedebista não vai tomar qualquer iniciativa para além do PNI.  

A ação dos municípios gaúchos que procuram pelo Butantan não é inédita. Já aconteceu em Santa Catarina. A Federação Catarinense de Municípios (Fecam) vai assinar o protocolo de intenções com o instituto nesta quinta. O presidente da Fecam e prefeito do município de Rodeio, Paulinho Weiss (PT),  admite que o protocolo não estabelece número de doses, valores ou prazos, e funciona mais como intenção de que, assim que a vacina estiver aprovada, as cidades possam ter acesso. Mas assinala sua capacidade de pressão. “O protocolo forçou nosso Estado a fazer o debate sobre a imunização. Antes o que tínhamos era a espera pelo governo federal. No nosso entendimento, é óbvio que eu pagar R$ 56,00 por cada dose da Coronavac, e é este o preço médio, compensa muito mais do que comprar um teste PCR a R$ 180,00 a unidade”, assinala.

A disputa nacional

O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), que está em disputa aberta com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pela sucessão presidencial em 2022, ainda em junho negociou diretamente com a farmacêutica chinesa Sinovac a compra de doses prontas e insumos para a fabricação da vacina Coronavac, além da transferência de tecnologia ao Instituto Butantan, em São Paulo. Garantiu a aquisição de 46 milhões de doses para janeiro e um “entendimento” para o fornecimento de outras 14 milhões de doses em fevereiro.

A partir daí, novas doses dependem da ampliação da fábrica do Butantan, que aumentará sua capacidade de produção, podendo chegar a 100 milhões de doses ao ano (a conclusão das obras, contudo, está prevista apenas para o final de 2021). Ou de outros acordos com a Sinovac, que também na última segunda informou novo investimento para a produção de mais 600 milhões de doses ainda em 2020. Nenhum governo no Brasil além do paulista informou até agora contato direto com a farmacêutica.

Na segunda-feira, Dória anunciou o início da imunização em São Paulo para 25 de janeiro, deflagrando uma sucessão de movimentos do governo federal e de seus pares nos estados. O Ministério da Saúde, que havia anunciado um plano preliminar de imunização com começo apenas em março, e baseado na vacina desenvolvida pela AstraZeneca/Oxford, primeiro voltou a considerar a vacina da Pfizer/BioTech. Depois, na terça, na reunião com governadores, puxou o início da imunização para o final de fevereiro. Nesta quarta, em entrevista à Rede CNN, o ministro Eduardo Pazuello levantou a possibilidade de adiantar ainda mais o cronograma.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895