“Saio da vida para entrar na história”: A memória e o legado
Correio do Povo relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas. Os fatos e as repercussões do suicídio de uma das maiores figuras políticas do Brasil no século XX
publicidade
Na história brasileira, poucos são os seus personagens para os quais falar de “memória” e “legado” é igualmente pertinente e relevante. A memória se trata, grosso modo, de uma recuperação, uma “volta”. O legado é algo que se prolonga, que transpõe os limites temporais da existência. Getúlio Vargas contempla as duas abordagens.
A ameaça do golpe havia se esvaído por ora. A furiosa oposição comemorava discretamente, face à comoção impressionante que tomou o país. A reação popular indicava que era hora de atenuar a carga. Apesar de a figura de Getúlio de repente se transformar numa espécie de “homem santo” junto às massas, se recobrindo da estima coletiva como “pai dos pobres”, ao fim ele havia saído de cena. A sua pessoa se tornava um emblema, um símbolo. Mas símbolos não fazem política. Participam dela “apenas” como referenciais.
O conservadorismo brasileiro se deu por satisfeito com a troca necessariamente feita após a morte do presidente. Seu vice, o potiguar Café Filho — membro do direitista Partido Social Progressista (PSP), de Ademar de Barros —, saberia o que fazer, uma vez no comando, na direção do que os oposicionistas desejavam. Getúlio nunca havia confiado em Café Filho. Na véspera do suicídio, o vice havia rompido publicamente com o presidente.
Não tardou para o novo governo voltar o olhar na direção de seus apoiadores. Café Filho defendeu o desmanche de diversas realizações do período Vargas, sobretudo aqueles frutos de seu retorno democrático.
A longo prazo, como sugere a historiadora e pesquisadora Marieta de Moraes Ferreira, o legado de Getúlio para a política nacional recebeu diferentes ênfases ao longo das décadas. Juscelino Kubitschek, no imediato pós-Era Vargas, foi eleito com o “apoio” de Getúlio, que continuou uma referência política. O fim da linha do “império getuliano” vem, enfim, com o golpe militar, exatos dez anos após a morte e não acaso contra seu principal herdeiro, João Goulart, símbolo do trabalhismo já em tempos de ministério varguista. A ditadura configurou uma conjuntura asfixiante para a memória de Getúlio. Na prática, representou o momento em que a Era Vargas foi encerrada.
À metade do caminho de nosso período antidemocrático, a figura de Vargas precisou ser “realocada” pelo poder. Assim, a ênfase recai sobre sua faceta de ditador dos primeiros 15 anos, inimigo da liberdade e da democracia.
Em 1982 foi celebrado o centenário de seu nascimento no contexto de uma atmosfera mais distendida, consequência de uma abertura. Logo, com a redemocratização, Getúlio Vargas se converteria em cabo eleitoral ideológico. Nos anos 1990, a Era Vargas foi decretada encerrada: as avaliações críticas retiravam suas razões da abertura da economia, com a privatização de empresas estatais e a redução da atuação do Estado na economia. Seria a sua “terceira morte”.
Passados 70 anos de sua morte, parece seguro afirmar que Getúlio Vargas resiste à cooptação de sua herança política. E é improvável que morra definitivamente.