“Saio da vida para entrar na história”: As várias crises antes do atentado
Correio do Povo relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas. Os fatos e as repercussões do suicídio de uma das maiores figuras políticas do Brasil no século XX
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O atentado da rua Toneleros, ocorrido em 5 de agosto de 1954, marcou, como não poderia deixar de ser, a história brasileira. Em geral, sempre que se fala do suicídio do presidente Getúlio Vargas – uma morte eminentemente política, além de um drama humano em si –, se recorre ao atentado como início da narrativa da derrocada. Mas este é um olhar superficial.
Desde a eleição democrática de 1950 que reconduziu Vargas ao poder, o cenário era inédito para o presidente, apesar dos 15 anos anteriores em que ocupou o Palácio do Catete. O sistema partidário estabelecido anos antes deu origem a forças oposicionistas importantes e, sobretudo, organizadas e, muitas vezes, virulentas. A principal delas seria a União Democrática Nacional (UDN), partido de tendência liberal, a face do conservadorismo brasileiro. Seu principal nome tornou-se uma das figuras mais representativas da política nacional do século XX: o jornalista fluminense Carlos Lacerda. De passado comunista, Lacerda utilizava o seu próprio jornal, “A Tribuna da Imprensa”, para lançar ataques frontais ao governo, centrando na “pessoa física” de Vargas. Será Lacerda o alvo do malfadado atentado.
Antes, porém, a crise se formava a partir de conjunturas externas (principalmente com dificuldades advindas do contexto internacional, em particular a guerra da Coreia) e internas (destacando-se a progressiva e irrefreável carestia: o custo de vida aumentou 11% em 1950, outros 11% em 51 e impressionantes 21% em 52). Duas tendências opostas disputavam as decisões sobre o rumo do desenvolvimento econômico do Brasil. A primeira era a visão nacionalista e intervencionista, a segunda defendia a participação do capital estrangeiro e a limitação do papel do Estado na economia. O presidente encampava a primeira e, como símbolo de independência, ficou marcada em seu último período à frente da nação a fundação da Petrobras. Companhia integralmente nacional e que operava um setor econômico central, a Petrobras, nos moldes em que foi concebida e executada, dispensava e excluía grandes interesses internacionais. A política varguista grosso modo próxima aos trabalhadores já desagradava a elite, a intervenção resoluta do governo na economia contrariava grupos poderosos. O Exército, que nutria um imaginário “regulador” da política brasileira, enfrentou um racha. Como peça importante na engrenagem de sustentação de governos, essa divisão ferrenha complicava decisivamente a estabilidade do governo de Vargas.
Outro aspecto crucial foi o “clima social” que se foi tensionando, incentivado por campanhas da imprensa. Acusações de corrupção pipocavam a cada semana. Entretanto, foram as dificuldades do dia a dia que, lentamente, afastaram o governo das massas. A Marcha das Panelas Vazias e a Greve dos 300 mil, ocorridas em março de 1953, desafiaram a base popular de Getúlio. A nomeação de João Goulart para o Ministério do Trabalho elevou o tom da oposição que via em Jango um “agitador”, facilitador para uma “república sindicalista”. Era o temor do comunismo penetrando decisivamente no discurso político brasileiro. Vargas começou então uma série de manobras aflitas que barrassem o fracasso. Jango foi convidado a se retirar do governo após o anúncio de aumento de 100% do salário-mínimo – ao que o Exército reagiu com um manifesto à nação –, enquanto foi nomeado um militar anticomunista para o Ministério da Guerra. O distanciamento de Vargas para a classe média era nítido. De todos os atores sociais, o Exército era o principal contestador, ajudado pela carga crítica da imprensa. O “humor” nacional havia se tornado pesado.