“Saio da vida para entrar na história”: Maior que a covardia

“Saio da vida para entrar na história”: Maior que a covardia

Correio do Povo relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas. Os fatos e as repercussões do suicídio de uma das maiores figuras políticas do Brasil no século XX

Juliano Bruni

Edição especial da Folha da Tarde retrata a morte do presidente Getúlio Vargas

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Sete décadas depois, a história ainda está envolta na névoa densa dos fatos e das interpretações. Decerto era assim também que os próprios personagens desse momento crucial da vida brasileira viam o desenrolar dos acontecimentos.

Ao menos desde o dia 5 de agosto, tudo parecia acelerado em demasia, ou dolorosamente retardado. O atentado da rua Tonelero havia colocado a situação de Getúlio Vargas em termos dramáticos, que podem ser resumidos em duas palavras: licença ou renúncia.

Mas, como se pode ver na manhã do dia 24, as saídas, para Getúlio, não se resumiam a essas duas alternativas. Antes da execução daquilo que, com o distanciamento do tempo, parece ter sido uma decisão ponderada, os sinais do que o presidente nutria em sua mente apareciam furtivamente em meio aos dias conturbados que se seguiram à morte do major Rubens Florentino Vaz.

Outro major — esse fielmente a serviço de Getúlio — encontrou algo intrigante na noite da sexta-feira, 13 de agosto. Hernani Fittipaldi, oficial da Aeronáutica e ajudante de ordens do presidente, ao mexer com documentos despachados por Vargas, se deparou com um bilhete em papel timbrado rabiscado a lápis:

“À sanha dos meus inimigos, deixo o legado da minha morte. Levo a mágoa de não ter podido fazer pelos humildes tudo o que desejava”.

Naquele mesmo dia, a anotação correu por algumas mãos no Palácio do Catete com a preocupação de que se tratasse de um “bilhete de um suicida”.

Primeiro o major do Exército José Silva Acioli, enfim Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de Getúlio. No contexto sensível daqueles dias, aquelas palavras causaram pavor. Interpelado por Alzira, Getúlio foi tão carinhoso quanto direto.

Com a mão no ombro da filha, tocou-lhe a testa e disse: “Olha aqui, rapariguinha, se você estiver pensando em suicídio, risque isso de sua cabecinha, porque o suicídio é uma covardia, e a minha morte tem que representar algo superior a uma covardia”.

Alzira se deu por satisfeita.

O país havia se transformado em um grande burburinho. As diatribes de Carlos Lacerda ecoavam. O jornalista ao menos tinha um rosto, era o grande opositor, publicamente confrontando o próprio presidente da República com a ênfase renovada pela morte de Vaz e o pé enfaixado pelo tiro da Tonelero.

As leituras alternativas ao inquérito policial-militar (a versão oficial do atentado) sobrevivem décadas depois, bem embasadas ou menos. Mas, em 1954, no duelo entre o tribuno ferido e Getúlio, era o presidente quem estava nas cordas. Mas os contendores não eram apenas esses dois. Mais discreto, embora não menos veemente, estava o Exército.

Munidas de uma convicção férrea de seu próprio papel de “reguladores” da política nacional, as armas pressionavam Getúlio de uma maneira mais desconfortável.

O próprio Fittipaldi em entrevista de 2004 esclareceu que o presidente não se incomodava com ataques à sua pessoa, mas se abalava com o questionamento sobre seu papel de governante.

Lacerda se “dispersava” entre esses dois caminhos, mas o Exército não. Com o andamento das investigações do atentado da Tonelero da forma como estava acontecendo — sem margens para

defesa, com a construção, pela imprensa, de uma culpa inegável de partida —, na gangorra da narrativa Getúlio estava na baixa.

E lá ficou. Menos de uma semana após o crime, a Força Aérea Brasileira (FAB) tomou para si o inquérito, logo arrancado da Polícia Civil e abraçado pelos militares, sem prestar contas a

ninguém. A base aérea usada para as investigações batizou o regime excepcionalmente diligente que a força imprimia na suposta elucidação da história.

A “República do Galeão” agiu com independência autossuficiente.

Do relatório que produziu derivou um manifesto, assinado por 19 generais do Exército em 22 de agosto. A exigência era clara e única: a renúncia imediata de Getúlio. A política nacional agora era uma jangada que descia a corredeira em grandíssima velocidade. Logo adiante estava a cascata.

Ninguém via com clareza a queda à frente.

A oferta do presidente foi se licenciar do cargo até o esclarecimento do atentado.

Oferta negada. As armas foram taxativas e endureceram ainda mais. Lacerda comemorava: “Aqui

estou, no dia da redenção nacional para declarar que esse covarde, esse pusilânime, não está licenciado, está é deposto, o lugar dele é no Galeão ou no estrangeiro, e deve apodrecer na cadeia!”.

Às duas da madrugada do dia 24, Getúlio sentava à mesa com seus ministros. Ouviu que os oficiais das forças haviam ratificado o manifesto dos brigadeiros. A renúncia era a única opção dada. Argumentou ainda pela licença. Não havia mais espaço para argumentação.

Conta-se que puxou do bolso um papel, assinou sem dizer palavra e recolocou no bolso.

Seria a carta-testamento. Para a tomada de decisão do que viria a fazer não precisou sequer o irmão vir lhe comunicar, perto das 6 da manhã, que sua oferta havia sido rejeitada. Entre 7h30min e 8h o estampido soou. O presidente se matou com um tiro no coração de revólver Colt calibre 32, cabo de madrepérola, de pijama com suas iniciais, no seu apartamento no Catete.

Getúlio Vargas precisou ressignificar o próprio conceito de covardia. Na hora derradeira, encontrou algo maior.


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