“Saio da vida para entrar na história”: Tristeza e fúria
Correio do Povo relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas. Os fatos e as repercussões do suicídio de uma das maiores figuras políticas do Brasil no século XX
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“Encontramos o presidente de pijama, com meio corpo para fora da cama, o coração ferido e dele saindo sangue aos borbotões. Alzira de um lado, eu do outro, ajeitamos o presidente no leito, procuramos estancar o sangue, sem conseguir. Ele ainda estava vivo. Havia mais pessoas no quarto quando ele lançou um olhar circunvagante e deteve os olhos na Alzira. Parou, deu a impressão de experimentar uma grande emoção. Neste momento, ele morre. Foi uma cena desoladora.”
O então ministro da justiça Tancredo Neves rememorou assim para a revista Manchete, em 1984, os primeiros instantes após o tiro fatal. Morto Getúlio, a notícia logo se espalhou naquela terça-feira. As rádios liam repetidamente a carta-testamento e trechos de notas manuscritas pelo presidente, atualizavam informações sobre as agitações que, ainda na metade da manhã, começavam a espocar pelas principais cidades do país. O Brasil foi tomado de uma crise nervosa. A comoção mistura em um único sentimento a dor, a raiva e a gratidão do povo. O anúncio foi feito respeitando o fato aparente: Getúlio se matou. Mas a população que foi às ruas tinha uma outra interpretação, visceralmente espontânea: “(eles) mataram Getúlio!”.
Por “eles” a massa queria dizer, basicamente, Lacerda e a UDN, os militares, os grandes interesses e o “império” americano. As multidões que se aglomeravam em velocidade impressionante nas ruas e praças das capitais traduziram essa leitura em ação efetiva. Percorriam chorando e gritando as artérias das cidades munidos de paus e pedras, escalando paredes, identificando os algozes de Vargas e, portanto, os seus próprios. No Rio, Lacerda, certamente surpreendido pelo gesto do arqui-inimigo, precisou se refugiar na embaixada americana. De lá, foi retirado por um helicóptero militar até o cruzador Barroso, ancorado na Baía da Guanabara. Passou os quatro dias seguintes na casa de um amigo, na Ilha do Governador, seguido de uma temporada no exterior até os ânimos se acalmarem. Cartazes pedindo a morte de Lacerda eram vistos de norte a sul. As representações dos partidos e as sedes dos principais jornais opositores foram os principais alvos. A Tribuna da Imprensa, de Lacerda, e o Globo foram apedrejados e vandalizados, os caminhões e as edições do dia incendiados. Os prédios da UDN por todo o país receberam a fúria popular.
Em Porto Alegre, a multidão se deparou, na Praça da Alfândega, com a bandeira nacional a meio mastro em frente ao comitê da UDN, mas provavelmente se tratava de uma homenagem póstuma ao major Rubens Vaz, vítima da Tonelero. Emissoras de rádio foram atacadas e a revolta ambulante não esqueceu a embaixada dos EUA e os prédios de companhias americanas (como a Standard Oil e a Light & Power). O “arsenal” dos manifestantes era composto sobretudo de fotos de Getúlio e bandeiras do Brasil. Sobretudo no Rio, em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Natal e Aracaju, a massa percorria as ruas em uma revolta e tristeza siamesas. Em diversos pontos, o exército e a polícia entraram em confronto com a multidão.
No Palácio do Catete, se estima que mais de um milhão de pessoas tentaram ver o corpo de Getúlio, velado durante a tarde e a noite. Pouco mais de 60 mil passaram ao lado do caixão e as cenas se repetiam. Desmaios e crises de choro eram a tônica. Naquele momento, a raiva parece ter sido deixada na calçada. Na manhã seguinte, quarta-feira dia 25, um cortejo gigantesco acompanhou o féretro até o aeroporto Santos Dumont, de onde um avião conduziu o corpo de Getúlio diretamente a São Borja para ser enterrado em sua terra natal. A família do presidente morto recusou as homenagens oficiais – ao fim, seriam cínicas – e recusou também que um avião da Força Aérea transportasse o corpo. A massa estava, a seu modo de ver, em território inimigo: ali, no local da despedida, ficava o quartel da 3ª Zona Aérea, espaço da Aeronáutica, uma das “assassinas do presidente”. O pesar novamente deu lugar à fúria e os oficiais precisaram disparar para conter a população.
Com o suicídio de Getúlio, o golpe iminente se desfez no ar por uma década. Outras tentativas sociais foram feitas nesse intervalo, sempre com a figura de Vargas pairando sobre a vida nacional. Como, bem ou mal, faz até hoje.