“Saio da vida para entrar na história”: Um tiro no pé
Correio do Povo relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas. Os fatos e as repercussões do suicídio de uma das maiores figuras políticas do Brasil no século XX
publicidade
A rua Tonelero está ao pé do Morro de São João, corre paralela ao mar e fica a apenas quatro quadras da mundialmente famosa praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Quando esta cidade era ainda a capital federal, essa rua foi o cenário de um episódio decisivo na história do Brasil. Há 70 anos, foi ali que o jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor do então presidente Getúlio Vargas, sofreu um atentado de cunho político. Da escaramuça saiu morto o major-aviador Rubens Florentino Vaz, militar simpatizante de Lacerda que ofertava proteção ao candidato a deputado federal pela conservadora UDN (União Democrática Nacional).
O crime ocorreu no início da madrugada da quinta-feira, dia 5 de agosto. A versão oficial afirma que Lacerda, acompanhado do filho Sérgio, de 15 anos, retornava para casa no carro do major após discursar em comício de sua campanha no Colégio São José. Quando os três desceram do carro para se despedir, foram abordados por uma pessoa que surgiu das sombras, atravessando a rua. Vaz estava desarmado. Ainda assim, entrou em luta corporal com o agressor, recebendo um tiro no peito. Lacerda havia levado o filho até a garagem e retornava para a calçada, disparando contra o homem misterioso, que fugiu a bordo de um táxi. O jornalista havia sido atingido no pé. Na fuga desordenada, o guarda municipal Sálvio Romeiro, que percebeu o alvoroço, é alvejado, mas conseguiu anotar a placa do carro. Este número, por sua vez, foi o marco inicial de um novo combate, o da busca pelos responsáveis pelo atentado – executor e mentor. Lacerda, presumivelmente o alvo do crime, era alguém importante no universo conturbado e tensionado da política nacional. Presumivelmente o mandante também seria.
De uma investigação confusa, repleta de escolhas questionáveis – por exemplo, no inquérito não foi feita a reconstituição da dinâmica do crime, tampouco a acareação entre Lacerda e os acusados –, emergiram os nomes de Nelson Raimundo (o motorista do táxi), Climério Euribes de Almeida (membro da escolta do presidente) e Gregório Fortunato (o “Anjo Negro”, amigo de Vargas e chefe da guarda pessoal de Getúlio). O taxista disse que havia conduzido duas pessoas até a Tonelero. Um era desconhecido (se tratava de Alcino João do Nascimento, marceneiro contratado como pistoleiro), o outro era Climério. Daí até Fortunato a associação foi imediata. E deste para Getúlio os críticos trataram de estabelecer um vínculo incontestável. Lacerda não titubeou. Na manhã do próprio dia 5 declarou: “Para mim só há um culpado: o presidente da República”.
Essa acusação, e a condenação moral que o atentado inevitavelmente adquiriu junto à opinião pública, transformou em perfeita tempestade a crise que o governo enfrentava devido a atritos ideológicos, acusações e insatisfações vindas de todos os lados. As camadas populares estranharam, atônitas. A classe média, a imprensa e, sobretudo, o Exército renovaram a carga. Getúlio agora tentava se esquivar não de fatos de interpretação aberta, opiniões e meias verdades. Agora havia um cadáver – aliás, membro das Forças Armadas –, o mais destacado oposicionista ferido e provocado, os nervos aflorados por rancores, desconfianças e incompetências. A imprensa carregou as tintas, a oposição pressionava. Mais decisivo e diretamente implicado, o Exército montou posição e elevou o tom. Pedia nada menos que a renúncia.
Ainda hoje existem contestações à versão oficial do atentado da rua Tonelero. Alguns pesquisadores afirmam, por exemplo, que Lacerda não seria o alvo dos atiradores, nem mesmo que o objetivo era um assassinato. De qualquer forma, o crime convulsionou o país. Gregório, Climério, Alcino e Nélson foram julgados e condenados. Para Getúlio, os tiros no peito do oficial e no pé de Lacerda foram uma facada nas costas. Passaram 19 dias e tudo convergiu para a noite tensa de 23 de agosto e, enfim, para a manhã do dia seguinte.