Sobreviventes e órfãos da Covid-19 cobram ações e criticam governo

Sobreviventes e órfãos da Covid-19 cobram ações e criticam governo

Audiência pública da CPI teve momentos de emoção e críticas de familiares de mortos ao enfrentamento da pandemia

R7

Audiência pública da CPI teve momentos de emoção e críticas de familiares de mortos ao enfrentamento da pandemia

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Em uma das últimas reuniões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, sobreviventes e familiares de pessoas que faleceram em decorrência da doença contaram suas histórias em uma audiência pública nesta segunda-feira. A audiência foi marcada por momentos de emoção e críticas ao governo de Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a condução do País durante a pandemia.

Os senadores ouviram sete pessoas nesta segunda, entre sobreviventes e pessoas que ficaram órfãs em decorrência da Covid-19. Os depoentes, de várias regiões do País, relataram dificuldades para obter equipamentos de proteção individual (EPI), hospitais cheios, cobraram políticas públicas de valorização de profissionais da saúde, criticaram atitudes de Bolsonaro ao longo da pandemia e pediram para que a população tome a vacina contra a Covid-19.

O fundador da organização não governamental (ONG) Rio de Paz, Antonio Carlos Alves de Sá Costa, foi o primeiro a falar durante a audiência pública. Ele criticou a condução de Bolsonaro da crise causada pela pandemia e homenageou profissionais que seguiram trabalhando ao longo de todo o período. “Nossos caixas de supermercado e atendentes de farmácia impediram a interrupção do suprimento de comida e medicamento. O que falar dos nossos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde? Como não pensarmos que adoeceram e morreram por anelar e cumprir sua vocação com coragem e excelência”, afirmou o fundador da Rio de Paz.

Para Costa, Bolsonaro demonstrou uma “impressionante falta de empatia” ao não expressar pesar por vítimas ou visitar hospitais. “Jamais o vimos derramar lágrima de compaixão ou expressar profundo pesar pelo povo brasileiro. Não soubemos de favela que ele tenha visitado ou hospital para o qual tenha se dirigido, a fim de comunicar ânimo aos nossos profissionais de saúde. Nenhuma palavra de direção ou encorajamento às milhões de famílias aturdidas com a crise múltipla que se estabeleceu no nosso país”, afirmou Costa.

Enfermeira em Manaus (AM), Mayra Pires Lima perdeu a irmã, que faleceu em consequência da Covid-19, deixando quatro filhos órfãos. Mayra relatou que, durante o primeiro ano da pandemia, chegou a receber máscaras compradas por amigos e doá-las para gestantes que atendia na Maternidade Balbina Mestrinho, onde trabalha. “Durante todo o ano de 2020, os profissionais de saúde tiveram que arcar com seus EPIs. Hoje eu agradeço aos meus amigos de faculdade, amigos enfermeiros, colegas que não são da área da saúde, porque muitos dos EPIs que eu usei, eles compraram para mim e compraram para outros colegas também, porque nós não tínhamos nem esta máscara”, contou a enfermeira.

Mayra também cobrou comprometimento do Congresso para aprovar o projeto de lei que estabelece o piso nacional para remuneração de profissionais da enfermagem. “A gente não precisa de tapinha nas costas, a gente precisa de valorização, a gente precisa evitar que os nossos colegas morram. Muitas vezes a gente vai atender os pacientes e nós tiramos do nosso próprio bolso para cuidar deles, para evitar que eles morram, como eu fiz muitas vezes”, afirmou a enfermeira.

Os senadores também se emocionaram com os relatos de Giovanna Gomes, que perdeu pai e mãe com uma diferença de 14 dias, e de Katia dos Santos, que também ficou órfã ao perder os pais para a Covid-19. A mãe de Kátia era cliente da operadora de saúde Prevent Senior e foi tratada com medicamentos sem eficácia e sem autorização da família.

Giovanna, de apenas 19 anos, passou a ser responsável pela irmã de 10 anos. “Dois dias depois do falecimento da minha mãe, meu pai foi internado. E a gente não teve nem tempo de sofrer pela minha mãe”, contou a jovem aos senadores. “Ele passou acho que foram 13 dias internado e veio a óbito também. Foi uma diferença de 14 dias do meu pai e da minha mãe. Quando meus pais faleceram, a gente não perdeu só os pais, a gente perdeu uma vida”, completou a jovem, de São Luís (MA).

Internação na Prevent Senior

Kátia, que mora em João Pessoa (PE), mas é originalmente de São Paulo (SP), havia passado um ano sem ver os pais por causa da pandemia. Seu pai foi o primeiro a ser infectado pela Covid-19, em março deste ano, e foi encaminhado a um hospital público. A mãe de Kátia contraiu o vírus logo depois e foi tratada na rede da Prevent Senior, operadora de planos de saúde atualmente investigada pela CPI, da qual era cliente há 15 anos.

A mãe de Kátia passou por uma consulta por videochamada, na qual o chamado “kit Covid”, com medicamentos sem eficácia, foi receitado sem qualquer exame prévio. “Não fizeram nenhum exame com ela, e acabaram mandando o “kit covid” para ela. A gente recebeu esse “kit covid”, começamos a medicá-la, mesmo sabendo – porque a gente tinha algumas dúvidas sobre todos esses remédios – que não era eficaz, mas como você vai falar para uma idosa de 71 anos que confia no convênio que aquele remédio que o médico mandou para ela, para cuidar dela, na cabeça dela, esse remédio não estaria fazendo nada?”, questionou.

Segundo ela, ao detectar que a oxigenação da mãe estava oscilando, Kátia levou a mãe a um hospital da Prevent Senior no bairro da Mooca, zona leste da capital paulista. Após esperar por cerca de três horas, o médico que a atendeu afirmou que não seria possível realizar uma tomografia para verificar a situação dos pulmões da paciente. “Ele falou que o hospital da unidade da Mooca não estava separado só para atendimento Covid, ele estava atendendo várias pessoas, e que a máquina de tomografia ali seria complicado usar, porque tinha outras pessoas lá dentro que não estavam com Covid”. Katia disse ainda que o médico afirmou que levaria mais três horas para que o tomógrafo fosse higienizado.

Sem conseguir realizar o exame, Kátia e suas irmãs levaram a mãe de volta para casa, onde a situação da senhora de 71 anos piorou rapidamente. No dia seguinte, a família levou a idosa, que já respirava com o auxílio de oxigênio, novamente ao hospital. “E nós a levamos até a unidade, de novo, da Prevent Senior na Mooca. Aí, sim, tiraram a saturação dela, estava baixa, fizeram os exames e viram que o pulmão dela estava 50% comprometido. Só que não tinha vaga no hospital. Nós ficamos aguardando, e a mãe conseguiu a transferência para a unidade de Pinheiros, o Sancta Maggiore, às 3h da manhã. Só que, nesse mesmo dia, segunda-feira, 22 de março [de 2021], antes mesmo de a gente levar minha mãe para o hospital, a minha irmã recebeu uma ligação do hospital em que meu pai estava internado”.

O pai de Kátia faleceu durante o auge da segunda onda no país e, segundo ela, a funerária estava sobrecarregada, o que fez com que sua irmã tivesse de procurar o corpo do pai entre os outros falecidos que aguardavam sepultamento. “Ela teve que colocar o corpo do meu pai dentro do caixão. Eles foram ainda até o cemitério. Chegando lá, o rapaz da funerária falou que, se não se importassem, ele teria que deixar o corpo do meu pai no chão, na terra, porque ele tinha muitos corpos ainda pra procurar e buscar. Só conseguimos fazer uma oração rápida de despedida do homem que ensinou a gente a ser as mulheres que somos hoje – não teve nem uma despedida digna. E eu tenho certeza de que isso não aconteceu só com o meu pai, isso aconteceu com muitos brasileiros”, relatou Kátia emocionada.

A mãe de Kátia teve queda de saturação nos dias seguintes, mas mesmo com níveis abaixo de 80% – quando geralmente o paciente é encaminhado para a UTI –, houve espera de dois dias para a transferência para o tratamento intensivo. Durante a internação, a mãe de Kátia foi tratada com um medicamento sem eficácia contra a Covid-19 e que é utilizado em tratamentos de câncer de próstata, a flutamida.

“Eu já comecei a desconfiar, pela situação, porque estava faltando leito na UTI. E aí demoraram mais dois dias, conseguiram levar a minha mãe para a UTI. Inclusive fizeram uso do medicamento flutamida para ela, mesmo sem o nosso consentimento – a gente não autorizou. E ali ela passou mais 26 dias na UTI. Ela passou por vários procedimentos e, infelizmente, no dia 26 de abril deste ano, ela nos deixou também”, completou.

Também deram seus depoimentos Rosane Maria dos Santos Brandão, que perdeu o marido, o professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) João Alberto dos Santos Pedroso; Arquivaldo Bites Leão Leite, sobrevivente da Covid-19 e que se recupera de graves sequelas da doença, como surdez de um ouvido e dificuldades para caminhar; e Márcio Antonio do Nascimento Silva, que perdeu o filho, Hugo Dutra do Nascimento Silva, que tinha 25 anos.

Márcio Antonio ficou conhecido nacionalmente ao ser visto recolocando cruzes fincadas na areia da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em homenagem às vítimas da Covid-19, em junho do ano passado. As cruzes haviam sido derrubadas por pedestres que minimizaram a manifestação que havia sido organizada pela ONG Rio de Paz.

O filho de Márcio Antonio, Hugo, faleceu em abril de 2020. Em junho daquele ano, quando sua imagem recolocando as cruzes correu o País, Márcio estava se recuperando da doença. “E, por acaso, foi Deus que fez eu andar na praia aquele dia. Quando eu vi aquele ato dele, eu não entendi. O cara começou a derrubar as cruzes. A minha esposa estava do meu lado, ela estava preocupada, porque a gente sabe da questão também da violência, da truculência dessas pessoas. Eu sou uma pessoa simples, eu não faço mal a ninguém. Quando eu vi aquela cena, eu fiquei pensando: ‘Não estou acreditando no que eu estou vendo, não estou acreditando. Isso aí é muito irracional, muita maluquice’. O meu ato ali foi um ato de resistência, até por já estar acostumado a esses atos, porque eu sou quilombola, eu venho de origem quilombola”, completou o taxista.


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