Déficit de armazenagem no Brasil beira o colapso, diz Paulo Bertolini

Déficit de armazenagem no Brasil beira o colapso, diz Paulo Bertolini

Presidente da Câmara Setorial de Equipamentos para Armazenagem de Grãos da Abimaq diz que produção brasileira cresce 10 milhões de toneladas ao ano frente à falta de capacidade estática para 125 milhões de toneladas por safra

Thaise Teixeira

Paulo Bertolini, presidente da câmara setorial de equipamentos da abimaq

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O senhor afirma que o Brasil entrou num ciclo vicioso e perigoso com relação à armazenagem da produção agrícola. Por quê?

A nossa instituição, a Abimaq, através da nossa câmara setorial, tem alertado os governos, ano após ano, que o Brasil cresce na produção agrícola mas não em capacidade estática para armazenar e processar os grãos. Em média, nos últimos 20 anos, a produção brasileira cresceu 10 milhões de toneladas ao ano. Mas a nossa capacidade estática – e não falo só de armazenar, mas de processar (secar, limpar e também armazenar) – cresceu a metade disso. A cada ano que se passou, o déficit aumentou 5 milhões de toneladas. Hoje, o déficit é de 125 milhões de toneladas, um recorde que tem trazido transtornos como redução do valor agregado da nossa produção.

Como tem se dado essa desvalorização?

À medida que reduz o preço que os agricultores recebem pelo milho e pela soja em relação ao preço internacional. Desde o ano passado, nosso prêmio (ágio) está negativo. Nunca mais subiu em relação ao preço internacional. E o prêmio negativo ocorre porque a infraestrutura do Brasil não é eficiente na qualidade e na quantidade.

De que forma a situação aparece no campo?

A gente tem deficiência de infraestrutura, o que envolve rodovias, ferrovias, transporte em geral e, principalmente, armazenagem de grãos. Hoje, nós não temos espaço: o agricultor brasileiro, quando vai colher, fica na necessidade de se ver livre da produção. Ele precisa jogar essa produção no mercado, fazendo com que os preços caiam mais do que se tivesse onde processar, limpar e armazenar a safra. À medida que tem oferta de um produtor, de dois produtores, de todo muito junto, os preços vão cair. Mas eles não ofertam porque precisam de dinheiro, mas porque não têm onde colocar o que produziram.

Por que a situação está mais preocupante agora em relação a anos anteriores?

Vínhamos num crescimento grande, com remuneração suficiente e com nossa estrutura dando conta do giro que tínhamos. Mas já no ano passado, com a capacidade estática dos portos, de armazéns e de indústrias estrangulada, muitas cooperativas mandaram recados para seus cooperados dizendo que não tinham como receber grãos. De lá para cá, houve redução nos preços internacionais das commodities. Neste ano, o mercado interno não está comprando, principalmente a soja. O produtor está segurando a safra em busca de melhores preços. E não vai ter onde armazenar tudo isso. A situação entrou num ciclo vicioso, o qual precisamos ter alguma forma de quebrar. Entramos num colapso que contribui para tirar ainda mais renda do agricultor, porque derruba os prêmios e diminui a chance de ele poder investir.

A que você atribui este descompasso?

Porque não existe dinheiro suficiente para investimento na área de armazenagem. O Programa para Construção e Ampliação de Armazéns (PCA), do governo federal, criado por volta de 2013, não é só para grãos, mas para outros produtos agrícolas e não tem recursos suficientes para a demanda. Neste ano passado, após um ou dois meses do anúncio do Plano Safra, o BNDES não tinha mais dinheiro porque a necessidade era muito maior que a linha disponibilizada.

De que forma a Abimaq pode atuar para começar a reverter a situação?

Só tem um jeito de interromper este ciclo vicioso: investir em armazéns. A Abimaq, através da Câmara Setorial de Equipamentos para Armazenagem de Grãos, é consultada pelo governo federal antes da elaboração do Plano Safra. Anualmente, enviamos sugestões para o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), assim como a CNA, OCB, Abramilho, Aprosoja, os bancos, etc. Neste ano, vamos enviar duas contribuições: uma para o Mapa e outra para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). É quase que uma repetição de décadas, mas o tamanho do agricultor brasileiro ficou tão grande que, pega de 2008 para cá, a safrinha passou a ser maior do que a safra. Sozinha, a safrinha produz, hoje, 100 milhões de toneladas.

Quais são os pontos apresentados ao Mapa?

Solicitamos o mínimo de R$ 15 bilhões para investimento no PCA, mas somente para armazenagem de grãos – e não de forma geral. O recurso leva em conta o crescimento médio de 10 milhões de toneladas ao ano e o investimento de R$ 1,5 mil por tonelada estática – considerando investimento total necessário (rede de energia elétrica, obras de engenharia civil, equipamentos, montagens, etc), principalmente nas regiões mais longes dos grandes centros. No Rio Grande do Sul, talvez, o valor fique mais barato.

E qual o pleito com relação à agricultura familiar?

Levaremos ao MDA um plano de armazenagem solidária. A ideia é que os agricultores familiares possam se reunir em condomínio, mas sem constituir cooperativa, para que, em forma de parceria, possam armazenar os grãos. O grupo pode ser constituído por até 19 produtores que, juntos, possam construir a unidade em forma de parceria para receber suas produções.

Há pedidos com relação ao acesso ao crédito?

Também vamos pedir a Mapa para desburocratizar o acesso à linha de financiamento do PCA, que precisa ser mais simples. Queremos priorizar o PCA porque a agricultura brasileira precisa de estruturas de armazenagem pulverizadas. Os investimentos precisam acontecer dentro das fazendas, independentemente do tamanho da produção. O agricultor já está entendendo que é preciso investir nisso, que secar e armazenar o grão dentro da fazenda faz parte do negócio dele, porque agrega valor e reduz custos, mas ele precisa ter condições de fazer esse investimento. Os Estados Unidos, por exemplo, conseguem armazenar mais de uma safra inteira de grãos, que é muito maior que a brasileira, e com 66% da capacidade estática dentro das fazendas. E isso é o ideal: a logística é mais barata, mais simples, tudo funciona melhor e o país escoa sua produção ao longo do tempo.

Como está distribuída essa capacidade estática nos estados do Brasil?

O Brasil tem um déficit de 125 milhões de toneladas de grãos. Ou seja, do total que produzimos na safra, não sabemos como tratar 125 milhões de toneladas – esse número é dado do ano passado. Temos somente 15% da capacidade estática dos armazéns (contando, inclusive, com os que foram construídos na década de 70) dentro das fazendas. Cerca de 85% da nossa estrutura está em centros urbanos, em distritos industriais das cidades e nos portos. É um absurdo ter que tirar a produção úmida do campo, ainda com impureza, sem processar, colocar na carroceria de um caminhão porque não tem onde armazenar. O caminhão ainda fica esperando em filas e pagamos caro o frete para que as unidades que estão na cidade possam receber os grãos. É ruim também para o motorista, que está parado. Perde-se tempo! Se o agricultor puder processar na fazenda (secar, limpar e armazenar), não tem necessidade de vender no momento da colheita, pode segurar e aproveitar momentos melhores. Além disso, não precisar sair do foco da colheita, momento que é crucial para ele, nem alugar espaço de terceiros para armazenar a produção.

Qual a representatividade financeira da terceirização no processo de armazenagem no caixa da fazenda?

A atividade da terceirização da secagem e a armazenagem é a mais cara que existe na agricultura. É mais barato alugar máquina para colher do que alugar um silo para colocar a produção. O valor chega a 35% do preço do milho por exemplo. Mas outros fatores afetam a formação deste custo. Quando ele entrega a produção sem fixar preço, ao ser remunerado, entra no preço a balcão. Se tenho produto comigo, na fazenda, vendo no momento mais favorável para mim, e meu grão vale mais do que o balcão. Quando minha produção está dentro do silo de terceiros, não tenho mais como tirar produto de lá e tenho que vender pelo preço que eles querem. São custos escondidos não por desembolso, mas por recebimento menor pela produção. Acaba se tornando muito viável investir no próprio armazém. Isso além de ser uma questão estratégica: você ter seu produto guardado, segregado, garante a seu cliente a rastreabilidade e abre outras possibilidades, como a de você produzir variedades específicas, por contrato. O produtor, então, passa a ser um homem de negócios.

Quanto custa um projeto de armazenagem atualmente?

Uma obra média de armazenagem custa, em média, R$ 3,5 milhões, levando em conta todos os desafios exigidos. Para montar um silo na fazenda, há uma série de burocracias de licenciamentos, garantias exigidas pelo banco. O processo da liberação envolve análise de projeto técnico. Há locais em que o agricultor também tem o desafio de trazer energia elétrica trifásica para dentro da propriedade. As distribuidoras de energia, no Brasil em geral, não têm interesse e apetite para aumentar a rede. O produtor também tem que fazer uma grande obra civil e também se capacitar para entender de secagem – porque ele a fará na fazenda, dentre outras necessidades.

Qual o tempo médio para o agricultor obter retorno sobre um investimento desse porte?

Para fazer um investimento em armazenagem, a gente calcula, em algumas regiões, que o payback ocorra entre 5 e 8 anos. Consideramos um investimento com retorno em médio prazo. Por isso, o produtor precisa ter dinheiro, com juro fixo e com uma visão de perspectiva futura para investir. Ele já consegue fazer isso, tem a visibilidade do futuro positivo, mas vai no banco e não tem recurso. E passam ciclos e a história continua a mesma. Temos que desburocratizar essas linhas e ter dinheiro suficiente para a necessidade brasileira e a demanda que já existe.

Qual a capacidade de a indústria brasileira absorver um suposto aumento de demanda neste sentido?

A indústria brasileira tem capacidade técnica, tecnológica, de chão de fábrica. Hoje, na área de armazenagem tem ociosidade. Exportamos para mais de 40 países o que produzimos de equipamentos para armazenagem aqui, mas o nosso produtor tem dificuldade de melhorar sua armazenagem. Temos uma indústria consolidada e reconhecida, mas o mercado brasileiro não consome por falta de recursos na área de investir.

De que forma essas perdas atingem as indústrias e o consumidor final?

Hoje, o Brasil não alimenta só 210 milhões de brasileiros, mas 800 milhões de pessoas no exterior dependem da nossa produção. Quando não armazenamos e processamos da forma correta e segura, expomos nossa produção à perda de qualidade, que é outro processo, mas que afeta diretamente a remuneração da nossa produção. Quando tem lugar para armazenar, você torna esse mercado futuro mais estável, sem oscilação de preço muito para cima ou muito para baixo. Então, a partir da nossa produção, no campo, você torna tudo mais previsível. É bom para a indústria, é bom para o consumidor da cidade, para o consumidor intermediário, para a sociedade brasileira.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895