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A arca da integridade em tempos de tempestade

Por RABINO PABLO SCHEJTMAN, da União Israelita Porto-Alegrense

Quando pequenas desonestidades viram hábito e a confiança social evapora, a sociedade apodrece por dentro. O livro de Gênesis já descreveu esse processo de decomposição moral e apontou um antídoto surpreendente: a integridade individual. Mas, em tempos de degradação coletiva, qual é o papel da retidão pessoal se a maré social arrasta todos para baixo?

A narrativa de Noé transcende aqui sua dimensão histórica. Não é apenas um conto sobre águas e embarcações, mas um tratado sobre sobrevivência ética. Em aquele mundo inundado de violência, a salvação não veio de movimentos de massa ou líderes carismáticos. Veio de um indivíduo que manteve sua integridade: justo nas relações, coerente no caráter, fiel aos princípios. A arca, antes de ser madeira e betume, foi uma decisão moral.

A Torá estabelece uma progressão pedagógica clara. Noé personifica a ética fundamental: decência pessoal e cuidado com os seus. Abraão encarnará depois a coragem cívica — a intercessão pelo destino coletivo, como na sua defesa de Sodoma (Gn 18:23–33). Noé impede que o mal o contamine; Abraão recusa que o mal defina a cidade. O caminho é claro: primeiro, o caráter pessoal sólido; depois, a coragem cívica. A própria retidão precisa consolidar-se antes de estender-se ao bem comum.

Hoje, a desconfiança nas instituições atinge níveis alarmantes. Pequenas fraudes se naturalizam no cotidiano. Por isso, as reformas cosméticas não bastam. Mudanças duradouras nascem de hábitos consistentes de honestidade — de pessoas que criam zonas de sanidade moral e reordenam o ambiente ao redor. São aqueles que escolhem manter-se íntegros quando a maioria cede à correnteza.

Construir "arcas" assume formas concretas. Na educação, valorizar o mérito real acima de atalhos. No trabalho, preferir a excelência ao expediente fácil, relatar fatos com precisão. Nas famílias, ensinar pelo exemplo. Nas comunidades, cultivar espaços em que a reputação se constrói por meio do serviço genuíno.

Estas arcas começam no cotidiano: recusar o "jeitinho" no contrato; manter veracidade nos relatórios; pagar os impostos devidos; cumprir prazos sem transferir culpas; reconhecer o mérito alheio; pedir desculpas e corrigir erros. São gestos discretos de integridade que estabilizam padrões éticos e oferecem referências confiáveis.

Promessas fazem barulho. Confiança nasce do silêncio acumulado de escolhas corretas repetidas dia após dia. Nosso dilúvio é de cinismo, mas a resposta permanece: vidas íntegras preservam sementes do futuro.

A integridade não exige heroísmo. Começa com uma escolha simples hoje, repetida amanhã. Quando as águas da corrupção baixarem — e a história mostra que sempre baixam — será desse terreno firme que renascerá uma sociedade saudável.

A lição de Noé ressoa com urgência: a arca da integridade não é escapismo, mas estratégia de preservação coletiva. Não precisamos esperar que todos mudem. A transformação começa com poucos que se recusam a ser arrastados. Esses tornam-se faróis para outros.

O convite é urgente: escolha uma prática de integridade e comprometa-se com ela. Repita-a amanhã. Convide outros. Quando muitos constroem pequenas arcas de decência, o dilúvio perde força. Neste novo terreno, voltamos a respirar confiança e esperança.