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Uma adaptação com alma em “O Filho de Mil Homens” na Mostra 2025

Filme de Daniel Rezende, aplaudido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entra em cartaz nos cinemas e em seguida na plataforma de streaming da Netflix

Longa foi filmado entre Búzios e a Chapada Diamantina
Longa foi filmado entre Búzios e a Chapada Diamantina Foto : Marcos Santuário / Especial CP

Quando “O Filho de Mil Homens” de Valter Hugo Mãe, ganhou vida no cinema pelas mãos de Daniel Rezende, a dúvida era inevitável: seria possível traduzir em imagens a prosa poética e densa de um dos autores mais sensíveis da língua portuguesa? A resposta veio durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde o filme foi recebido com entusiasmo e, mais do que uma simples adaptação da obra imaginada pelo talentoso Valter Hugo Mãe, revelou-se uma ode à delicadeza, à solidão e à reinvenção da família. A produção, fruto de uma parceria entre o diretor de “Bingo: O Rei das Manhãs” e a Netflix, com produção da Barry Company e da Biônica, chega primeiro aos cinemas antes de desembarcar na plataforma, em um gesto simbólico de resistência: o cinema ainda é o espaço ideal para que histórias humanas sejam sentidas em sua plenitude.

No centro da narrativa está Crisóstomo, um pescador de 40 anos que vive à beira-mar e à beira de si mesmo. Seu maior desejo é ser pai, mas a vida parece tê-lo privado dessa chance. Rodrigo Santoro, que foi homenageado este ano no Festival de Cinema de Gramado, surge em uma de suas atuações mais intensas e contidas, encarnando o personagem com uma serenidade profunda, um olhar que diz mais do que qualquer diálogo. Há em Santoro um entendimento exato do tempo do personagem, o tempo da espera, da ausência e da esperança. Ele não interpreta Crisóstomo; ele o habita, como quem compreende o silêncio do mar e o peso do vazio. Johnny Massaro, por sua vez, surge como Antonino, o jovem incompreendido que encontra em Crisóstomo e Camilo um lar improvável. Sua atuação é de uma vulnerabilidade comovente, revelando camadas de dor, busca e descoberta. Massaro e Santoro formam uma dupla de contrastes: um homem em busca de sentido e um jovem em busca de pertencimento, ambos orbitando o mesmo sol emocional. O filme tem, ainda a atriz, cantora, compositora, Rebeca Jamir, natural de Recife e que reside em São Paulo. Junto a Tuna Dwek, encabeçam o feminino potente da história.

Daniel Rezende, que já havia mostrado domínio sobre a sensibilidade e a forma em obras anteriores, conduz essa adaptação com o cuidado de quem entende que literatura e cinema não são inimigos, mas linguagens irmãs. Ele não tenta replicar a escrita de Valter Hugo Mãe. Optou por traduzir, com inteligência, o espírito da obra. O filme preserva o lirismo do texto original, mas encontra na imagem e na luz novas formas de poesia. É justamente aí que entra a deslumbrante fotografia de Azul Serra, que transforma cada cena em um quadro de respiração lenta. O mar, as redes de pesca, a luz suave sobre os rostos, os tons dourados do entardecer. Tudo compõe um universo visual que é, ao mesmo tempo, realista e mágico. O litoral brasileiro, filmado entre Búzios e a Chapada Diamantina, é personagem, não cenário. A natureza espelha as emoções: o mar agitado é o conflito interno, o horizonte aberto é a promessa de recomeço.
Essa sensibilidade visual casa perfeitamente com a essência do livro de Valter Hugo Mãe, um autor que escreve com o coração exposto, misturando brutalidade e ternura. O filme entende que “O Filho de Mil Homens” é menos sobre paternidade e mais sobre humanidade, sobre a necessidade de pertencimento e a coragem de amar sem garantias. Rezende não busca respostas fáceis: ele preserva as ambiguidades, os silêncios e as dores que fazem da obra literária uma reflexão sobre o que é ser gente. O resultado é um filme que emociona sem manipular, que fala sobre a ausência sem jamais perder a esperança.

A parceria com a Netflix representa mais do que uma estratégia de distribuição; é um gesto de valorização da arte nacional. Estrear primeiro nos cinemas e depois na plataforma é um convite à experiência coletiva da emoção. Em tempos em que o streaming domina o consumo cultural, “O Filho de Mil Homens” reafirma o poder da tela grande, o momento em que o público se cala, a luz se apaga e as imagens se tornam quase sagradas. Ao mesmo tempo, sua chegada posterior à Netflix garante que a poesia de Valter Hugo Mãe viaje longe, alcance novos públicos e transforme espectadores em leitores.

Há um raro equilíbrio entre força e leveza no filme. As atuações, a fotografia e a direção trabalham em harmonia para traduzir a melancolia luminosa que habita o universo do autor português. A trilha sonora discreta, as pausas prolongadas, os olhares suspensos, tudo convida à contemplação. Em tempos de pressa e ruído, Daniel Rezende entrega um filme que respira, que olha para o humano sem julgamentos e que celebra a beleza de se reinventar. É impossível sair da sessão sem a sensação de que, de alguma forma, todos somos filhos de mil homens, herdeiros das histórias que escolhemos amar, dos afetos que ousamos construir e das famílias que decidimos criar, mesmo que fora de qualquer molde. “O Filho de Mil Homens” é, enfim, um filme sobre o que nos falta e o que nos salva: a capacidade infinita de amar, mesmo quando tudo parece naufragar.

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