Quando “O Filho de Mil Homens” de Valter Hugo Mãe, ganhou vida no cinema pelas mãos de Daniel Rezende, a dúvida era inevitável: seria possível traduzir em imagens a prosa poética e densa de um dos autores mais sensíveis da língua portuguesa? A resposta veio durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde o filme foi recebido com entusiasmo e, mais do que uma simples adaptação da obra imaginada pelo talentoso Valter Hugo Mãe, revelou-se uma ode à delicadeza, à solidão e à reinvenção da família. A produção, fruto de uma parceria entre o diretor de “Bingo: O Rei das Manhãs” e a Netflix, com produção da Barry Company e da Biônica, chega primeiro aos cinemas antes de desembarcar na plataforma, em um gesto simbólico de resistência: o cinema ainda é o espaço ideal para que histórias humanas sejam sentidas em sua plenitude.
No centro da narrativa está Crisóstomo, um pescador de 40 anos que vive à beira-mar e à beira de si mesmo. Seu maior desejo é ser pai, mas a vida parece tê-lo privado dessa chance. Rodrigo Santoro, que foi homenageado este ano no Festival de Cinema de Gramado, surge em uma de suas atuações mais intensas e contidas, encarnando o personagem com uma serenidade profunda, um olhar que diz mais do que qualquer diálogo. Há em Santoro um entendimento exato do tempo do personagem, o tempo da espera, da ausência e da esperança. Ele não interpreta Crisóstomo; ele o habita, como quem compreende o silêncio do mar e o peso do vazio. Johnny Massaro, por sua vez, surge como Antonino, o jovem incompreendido que encontra em Crisóstomo e Camilo um lar improvável. Sua atuação é de uma vulnerabilidade comovente, revelando camadas de dor, busca e descoberta. Massaro e Santoro formam uma dupla de contrastes: um homem em busca de sentido e um jovem em busca de pertencimento, ambos orbitando o mesmo sol emocional. O filme tem, ainda a atriz, cantora, compositora, Rebeca Jamir, natural de Recife e que reside em São Paulo. Junto a Tuna Dwek, encabeçam o feminino potente da história.
Daniel Rezende, que já havia mostrado domínio sobre a sensibilidade e a forma em obras anteriores, conduz essa adaptação com o cuidado de quem entende que literatura e cinema não são inimigos, mas linguagens irmãs. Ele não tenta replicar a escrita de Valter Hugo Mãe. Optou por traduzir, com inteligência, o espírito da obra. O filme preserva o lirismo do texto original, mas encontra na imagem e na luz novas formas de poesia. É justamente aí que entra a deslumbrante fotografia de Azul Serra, que transforma cada cena em um quadro de respiração lenta. O mar, as redes de pesca, a luz suave sobre os rostos, os tons dourados do entardecer. Tudo compõe um universo visual que é, ao mesmo tempo, realista e mágico. O litoral brasileiro, filmado entre Búzios e a Chapada Diamantina, é personagem, não cenário. A natureza espelha as emoções: o mar agitado é o conflito interno, o horizonte aberto é a promessa de recomeço.
Essa sensibilidade visual casa perfeitamente com a essência do livro de Valter Hugo Mãe, um autor que escreve com o coração exposto, misturando brutalidade e ternura. O filme entende que “O Filho de Mil Homens” é menos sobre paternidade e mais sobre humanidade, sobre a necessidade de pertencimento e a coragem de amar sem garantias. Rezende não busca respostas fáceis: ele preserva as ambiguidades, os silêncios e as dores que fazem da obra literária uma reflexão sobre o que é ser gente. O resultado é um filme que emociona sem manipular, que fala sobre a ausência sem jamais perder a esperança.
A parceria com a Netflix representa mais do que uma estratégia de distribuição; é um gesto de valorização da arte nacional. Estrear primeiro nos cinemas e depois na plataforma é um convite à experiência coletiva da emoção. Em tempos em que o streaming domina o consumo cultural, “O Filho de Mil Homens” reafirma o poder da tela grande, o momento em que o público se cala, a luz se apaga e as imagens se tornam quase sagradas. Ao mesmo tempo, sua chegada posterior à Netflix garante que a poesia de Valter Hugo Mãe viaje longe, alcance novos públicos e transforme espectadores em leitores.
Há um raro equilíbrio entre força e leveza no filme. As atuações, a fotografia e a direção trabalham em harmonia para traduzir a melancolia luminosa que habita o universo do autor português. A trilha sonora discreta, as pausas prolongadas, os olhares suspensos, tudo convida à contemplação. Em tempos de pressa e ruído, Daniel Rezende entrega um filme que respira, que olha para o humano sem julgamentos e que celebra a beleza de se reinventar. É impossível sair da sessão sem a sensação de que, de alguma forma, todos somos filhos de mil homens, herdeiros das histórias que escolhemos amar, dos afetos que ousamos construir e das famílias que decidimos criar, mesmo que fora de qualquer molde. “O Filho de Mil Homens” é, enfim, um filme sobre o que nos falta e o que nos salva: a capacidade infinita de amar, mesmo quando tudo parece naufragar.