O novo subversivo: quem realmente desafia o sistema na moda?

O novo subversivo: quem realmente desafia o sistema na moda?

Provando que o universo fashion ainda consegue provocar o público, grifes Kenzo e Matières Fécales surpreendem na Semana de Moda de Paris

Correio do Povo

Desfile da coleção pronto-para-vestir da Matières Fécales na Semana de Moda de Paris

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A última Semana de Moda de Paris outono/inverno trouxe, entre os grandes desfiles, algumas propostas que desafiaram convenções e questionaram os rumos da moda contemporânea. Em um cenário onde muitas marcas apostam na reciclagem de tendências, Kenzo e Matières Fécales se destacaram ao resgatar a provocação como um elemento essencial da criação.

Para a especialista em negócios de moda Symone Rech, o grande questionamento da temporada foi se a moda ainda consegue realmente contestar.

“Nos últimos anos, o risco de desagradar ao público e as diretrizes de mercado cada vez mais rígidas fizeram com que muitas marcas optassem por caminhos mais seguros”, afirma a profissional, que também é fundadora da plataforma de tendências New & Now. No entanto, ela aponta que algumas coleções ainda conseguem romper padrões e desafiar o sistema.

Ao longo das apresentações deste ano, duas grifes se destacaram ao subverter expectativas e trazer um novo olhar sobre o que significa ser rebelde na moda atual: Kenzo, que reconstruiu sua identidade feminina flertando com o punk e o anti-establishment, e Matières Fécales, que transformou a passarela em um manifesto visual sobre identidade, corpo e estranhamento. Para a especialista, essas duas coleções foram um lembrete de que a moda pode – e deve – ser desafiadora.

🐇 Kenzo: alfaiataria punk, nostalgia e um coelho anárquico

A Kenzo marcou um retorno impactante da moda feminina ao seu repertório e não apenas reinterpretou o legado da marca, mas também adicionou uma nova camada de rebeldia. Sob a liderança de Joshua A. Bullen, a coleção abandonou o romantismo boho de temporadas passadas para apostar em referências punk e na desconstrução do tradicional.

A coleção apresentou um diálogo entre a elegância e a anarquia, misturando casacos longos de Harris Tweed ajustados à cintura com jaquetas cropped de duffle e bomber. A alfaiataria bem cortada foi combinada com silhuetas propositalmente exageradas, como as calças harém, que surgiram repetidamente ao longo do desfile. “A intenção era clara: subverter os códigos do vestuário tradicional sem perder a sofisticação”, analisa.

Mesclando a precisão da alfaiataria japonesa à irreverência britânica dos anos 70 e 90, a influencia dos quimonos apareceu em casacos com gola xale, e punhos de pele sintética foram uma ode ao visual Johnny Rotten e ao espírito DIY do punk.

No entanto, o momento mais impactante do desfile veio ao final, quando casacos oversized de pelúcia sintética – feita a partir de materiais usados na produção de brinquedos de pelúcia franceses – foram apresentados em rosa e azul pastel. O coelho, um símbolo frequentemente associado à inocência, foi transformado em ícone disruptivo.

A coleção também brincou com a lingerie como parte visível da composição dos looks. Camisolas puxadas para baixo revelavam bloomers de lã, trazendo uma desconstrução intencional da sensualidade tradicional.

Trilha sonora e atitude

A trilha sonora ajudou a construir essa narrativa de caos controlado, transitando entre Mobb Deep, Blondie, Patti Smith e Sex Pistols, até culminar com Chas & Dave, duo britânico conhecido por ironizar a cultura inglesa. “Esse mix de referências criou um efeito de nostalgia distorcida, onde nada estava ali por acaso”, comenta.

Este desfile não apenas marcou o retorno da Kenzo à moda feminina, mas reescreveu seu próprio DNA. Em vez de apostar no previsível, a grife jogou com a rebeldia de maneira refinada – e, ao fazer isso, entregou uma das coleções mais interessantes da temporada.

👄 Matières Fécales: distorcendo a estética da perfeição

Desde sua criação, a Matières Fécales tem sido uma marca de nicho, criada para quem rejeita os padrões de beleza tradicionais. Hannah Rose Dalton e Steven Raj Bhaskaran, designers criadores da marca, se conheceram em uma escola de modelagem em Montreal e, ao longo dos anos, desenvolveram uma estética pós-humana, onde o corpo é modificado, ampliado e deformado para além do que a biologia permite.

A estreia oficial na Semana de Moda de Paris aconteceu no Hotel Le Marois, um espaço clássico que, por algumas horas, foi transformado em uma espécie de cerimônia ritualística do estranho. A elite do underground estava lá para assistir.

Entre os convidados estavam Rick Owens e Michele Lamy, considerados os “padrinhos do grotesco”, que saíram do primeiro desfile eufóricos. Daphne Guinness, musa e herdeira da aristocracia excêntrica da moda, também compareceu, selando a legitimidade da marca no cenário vanguardista.

Alfaiataria brutalista e silhuetas mutantes

Se a expectativa era por algo conceitual, a Matières Fécales foi além. A coleção começou com um conjunto de alfaiataria rigorosa, mas de proporções alteradas. Casacos de lã preta de ombros exagerados e mangas longas com zíperes, permitindo múltiplas formas de uso, abriram o desfile.

Os cortes geométricos e as estruturas rígidas eram uma homenagem direta a Alexander McQueen, um dos ídolos da dupla, mas reinterpretados dentro de um contexto mais visceral.

A modelagem brinca com o excesso e o colapso

• Os casacos possuem golas monumentais, algumas com fivelas metálicas para cadeados e correntes, um elemento fetichista e disruptivo;
• Ternos de bouclé pálido aparecem desconstruídos, com bordas desgastadas, costuras expostas e um acabamento que parece corroído pelo tempo;
• Plataformas impossíveis criadas em parceria com Christian Louboutin, transformando a silhueta das modelos em algo quase mecânico;

Segundo Rech, o resultado foi uma moda que rejeita a noção de conforto e abraça a agressividade.

A paleta de cores era uma guerra visual: tons pálidos e desbotados, como branco sujo e bege acinzentado, contrastavam com preto absoluto e flashes de vermelho sangue. Mas o grande diferencial estava nos materiais. A coleção brincou com texturas contrastantes, criando uma experiência sensorial disruptiva.

Quando parecia que a coleção já havia levado o choque ao extremo, surge o look final: Hannah Rose Dalton desfilando um vestido de noiva pós-apocalíptico, com uma estrutura alada e um tecido que lembrava ataduras de múmia. A imagem foi descrita como etérea, assustadora e transcendental.

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👥 A moda como identidade e tribo

O desfile da Matières Fécales não foi apenas uma performance visual. A marca reuniu na passarela um casting diverso, com modelos que fazem parte da mesma cultura e estética que Hannah Rose Dalton e Steven Raj Bhaskaran vivem diariamente.

Steven explica: “muitas pessoas do nosso elenco são exatamente como nós. Fazemos parte de uma comunidade pequena, mas crescente, que compartilha o interesse pela estética pós-humana. E, ao mesmo tempo, nos ajudamos mutuamente a ter coragem, especialmente nesses tempos.”

Esse senso de identidade e pertencimento fez do desfile um momento especial. Não era apenas sobre roupas – era sobre criar um espaço para os corpos que a moda tradicional exclui.

A Matières Fécales entregou uma estreia radical, intensa e profundamente perturbadora. Em meio a uma temporada cheia de tendências recicladas, a marca trouxe algo novo – e isso, na moda, é cada vez mais raro.

Mas o maior desafio ainda está por vir: como manter essa visão radical dentro da indústria da moda, sem ser absorvido pelo sistema? A dupla mostrou um talento técnico impecável e uma visão artística singular, mas até onde conseguirão levar essa provocação antes que precisem ceder às exigências do mercado?

Symone reflete que “se há um caminho para a verdadeira revolução na moda, a Matières Fécales está trilhando um dos mais interessantes.”


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