A construção da dúvida

A construção da dúvida

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Por um livro

 

      Era o ano de 1991. Eu tinha 29 aninhos. Estava nos Estados Unidos por um mês depois de três meses na Alemanha. A minha vontade de andar pelo mundo era inversamente proporcional ao tempo que eu dispunha. Mas sempre se dava um jeito. Escolhi tantos lugares para visitar nos Estados Unidos que, Tom, meu acompanhante e intérprete, nem sempre conseguia entender minhas preferências. Já falei disso em outras oportunidades. Cada vez, porém, tem uma justificativa. Fomos a Dakota do Sul. A razão era a minha paixão pelo livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dee Brown. Chegamos, depois de muita viagem de carro, a um filete de água onde as coisas teriam ocorrido.

A literatura parecia bem melhor do que a realidade. Conversamos com um velho índio blasé que nos proporcionou, visto retrospectivamente, algumas frases mais enigmáticas para não voltarmos com a mente vazia de sabedoria indígena e cor local. Tom parecia vagamente entediado. Eu tentava me animar recordando cada passagem daquele que era então meu livro de cabeceira. Vale lembrar que, formado em história e tendo passado pelo mestrado em antropologia, pronto para embarcar para um doutorado em sociologia na França, eu cozinhava no fogo intenso das teorias. Tinha uma citação para cada situação concreta. Nem sempre as citações explicavam os acontecimentos, o que me fazia pensar que havia algo muito errado com os fatos. Eu era jovem, atormentado e cheio de lindas divagações.

Ainda não tinha deturpado Sócrates nem vampirizado Descartes. Passava as noites nos bares discutindo utopias ou lendo livros que se empilhavam nos escaninhos da minha memória fresca como conhecimentos em busca de uma aplicação. Das frases que o velho índio nos disse, ou que Tom achou razoável traduzir, algumas eu já citei. Vez ou outra, uma delas ressurge como uma provocação ou um vestígio de uma viagem sempre incompleta. A memória para mim é um mistério. Por que me acordo no meio da noite pensando num índio que vi por meia hora nos confins dos Estados Unidos e que me disse coisas que na época nem raparei?

Tenho comigo que tudo já foi dito. Mesmo assim, podemos e devemos dizer novamente certas coisas com pequenas variações na formulação. O velho índio me disse (ou Tom adaptou para meu gosto): “Os ventos não sopram lembranças de fatos que não aconteceram”. Hoje, bem pensado, chego, por hipótese, a imaginar que ele deve ter dito outra coisa. Talvez “ainda é cedo para a gente tomar um trago” ou “não estou muito inspirado hoje”. Era de manhã. O sol começava a esquentar. Havia pouco movimento. Eu acreditava em mitos e na inocência perdida.

O índio recebeu a sua gorjeta pelas poucas boas histórias que nos contou. No longo retorno de carro, creio que Tom me provocou:

– Você acredita em tudo o que ele disse?

Tenho convicção de que lhe respondi com três frases que pareciam formar um pouco poema. Posso estar enganado. Penso ter-lhe dito isto:

 

Tenho tão pouca certeza

Que minha única defesa

É a honestidade da dúvida.

*

Ou seria?

Tenho tão pouca defesa

Que minha única certeza

É a honestidade da dúvida.

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