A vida como um vitral

A vida como um vitral

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Pensar a vida como um vitral pode parecer esquisito. Eu sou esquisito. Tem quem ache que eu não durmo, não como e não brinco. O que, porém, não é esquisito nas sendas do imaginário, esse universo de realidade e fantasia onde moramos sem nos dar conta? Existem aqueles que imaginam viver num real puro e duro como as pedras de uma calçada. Essas pessoas, no entanto, se apegam às suas pedras como se elas guardassem mistérios que só elas seriam capazes de desvelar. Uma calçada, como uma rosa, tem sempre uma história singular e afetiva.

Nossa subjetividade tudo condiciona.

Há lugares tão suaves que chegam a nos dar vertigens, pontos tão portentosamente simples e improváveis como as imagens coloridas transfiguradas pela luz em vitrais que nos afetam os olhos feito bombas de arco-íris despejando fagulhas sobre campos verdes. Um dia me perguntei enquanto olhava a chuva: quais foram os lugares mais lindos que já vi? Hoje, não tenho dúvida: Macchu Picchu e a Santa Capela, em Paris. Em Macchu Picchu senti a sensação mais completa de paz que já experimentei. Na Santa Capela, diante dos seus vitrais, só consigo pensar na magia da arte.

Creio que nossas mentes funcionam como vitrais distorcendo e acumulando imagens expelidas por uma cornucópia. Em certos dias, com pouca luz, figuras se apagam, sensações diminuem, efeitos se perdem um pouco, sombras aplacam a poesia do cotidiano, personagens recuam para o fundo do palco, movimentos se congelam na placidez súbita do vidro, que, feito um buraco voraz, engole a própria transparência. Em outros dias, com muita luz, um vulcão começa a expelir movimentos, a vomitar cores, uma palheta de sentimentos, de vibrações, de tonalidades e de nuances de vida tão inimagináveis quanto nossa certeza de que existem unicórnios, cristais, deuses e amores eternos, universalmente eternos.

Por vezes, quando me perco na exuberância das sensações luminosas, vejo meu corpo como um vitral onde figuram como pontos coloridos todos os sentimentos do mundo, do meu mundo, este território singular perpassado por lendas, mitos, sonhos, esperanças, ilusões, desencantos e pelas travessias momentâneas ou duradouras daqueles que passaram por mim feito cometas serpenteando em céus coalhados de fogos tão fátuos quanto nossas teorias sobre a vida. Só existem três grandes temas nesse vitral: o mistério da existência, a morte e o amor.

O que é vida? Por que morremos? O que vale o amor?

O vitral se acende e apaga multiplicando respostas, acendendo esquecimentos, apagando gigantes que se apresentavam como guardiães do caminho. Somos vitrais e figuras desses quadros luminosos em constante deslocamento em sua aparente imobilidade. Em Macchu Picchu, vi um vitral natural. Na Santa Capela, vejo os vitrais mais extraordinários feitos pela mão humana. Na minha mente se constroem vitrais a cada dia, cada hora, cada segundo, vitrais que permanecerão para sempre nas paredes do meu imaginário. Vez ou outra, uma cena vaza numa frase, num poema, numa crônica apaixonada pelo sol da manhã ou pela vermelhidão do anoitecer.

A crônica é a poesia do asfalto armado.

 

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