Acidente de percurso

Acidente de percurso

Crônicas de uma relação em trânsito

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      Quando ele desceu do nono andar, viu o sol faiscando na basculante encrespada do corredor. Não resistiu a ideia de espiar o bairro do alto pela fresta dessa fechadura de vidro fosco. Abriu o que foi possível. Viu tudo em diagonal. A nesga verde que se ofereceu ao seu olhar exibia algo de melancólico na placidez do meio-dia. Caminhou até o elevador com passos pesados. Não se sentia leve sempre que precisava se abrir com estranhos. O terapeuta, apesar do tempo de tratamento, era um estranho. Um estranho que o conhecia melhor do que ninguém ainda que não lhe revelasse tudo.

      Contou os passos até abrir a porta do elevador. Era uma mania que o tranquilizava. Quando entrou, repetiu para si como quase sempre fazia:

– Lá vou eu sozinho dentro desta caixa.

      Organizou os pensamentos. Tarde da noite, espiara as luzes que brilhavam ao longe como faróis na solidão de um mar negro e silencioso. Gostava dessa imagem entre luz e escuridão. Alguma coisa o incomodava. Carregava, nos últimos tempos, uma intranquilidade quase metafísica. Observou os pontos luminosos como se fossem fagulhas de uma fogueira em extinção. Costumava falar disso para o terapeuta. Quem mais aceitaria ouvir suas digressões sobre a importância da noite para a reconstituição das forças morais e das energias psíquicas? Amava os ruídos da penumbra.

O elevador parou no sexto andar. Ninguém subiu. Sentiu-se aliviado. Passou pelo porteiro com um leve aceno de cabeça. No passado não muito distante os porteiros fumavam. Não mais. Um homem gentil. Avaliou rapidamente o teor dessa palavra de pouco uso. Quem ainda a utilizava?

– Obrigado, é muito gentil.

      Sempre que falava assim, percebia um sorriso amável nos lábios das pessoas. Sentia que elas ficavam inibidas como se ouvissem um palavrão. Em seguida, diziam algo para certificá-lo de que o entendiam. Passou pela moça que não o cumprimentava. Estava com o seu olhar de 90 graus. Acenou para o velho que o chamava de doutor. Ele atravessou a rua e retornou ao ponto de partida sem razão aparente. Desviou-se do morador de rua, que desfazia a sua cama. Tão tarde? Lembrou-se de que era aquele que andava desaparecido. Eles vão e voltam, disse. Alguns não voltam, recordou-se.

      Apesar de tudo, o tempo estava bom. Nem frio nem quente. A luz do dia estava ótima para uma fotografia apesar da hora. Não se via, porém, fazendo uma selfie antes de o sinal abrir. Uma multidão afluía no sentido contrário. Examinou alguns rostos com a curiosidade de um colecionador de selos. Ainda existem colecionadores de selos. Tentara ser um deles. Faltava-se persistência para colecionar coisas. Queria logo chegar ao fim. Havia comprado todos os pacotes de figurinhas de uma banca para fechar o álbum da Copa três dias depois de ter entrado na brincadeira. Não rolou.

Sentou-se no ônibus ao lado de uma senhora de ar sereno. Era morena, de cabelo muito curto e grisalho, magra. Não puxaria conversa. O que poderia lhe dizer? O que poderia lhe responder? Era o que se perguntava quando essas tentativas de conversa aconteciam. Uma mulher lhe dissera:

– Não confio nesse tempo.

      Fora num dia pálido. Desceu no centro. Admirou o cartão postal. Gostava das silhuetas dos prédios, inclusive da imagem do “esqueleto”. Não conseguia imaginar a cidade sem aquele prédio inacabado e chamuscado. Andou até a frente do edifício do terapeuta. Um amigo sempre lhe dizia:

– Terapeuta no centro? Que estranho!

      Ficou parado observando o fluxo. Ouviu um barulho. Dois carros se chocaram na avenida. Os insultos foram mais fortes do que os estragos materiais. Eram dois homens, dois caras magros, dois veículos azuis. Resolveu dar a volta no quarteirão para completar o tempo. Estava adiantado. Quem mora no centro? Sempre se perguntava. Olhou para algumas janelas altas. Viu-as como olhos semicerrados na imensidão da cidade. Contou vários homens de chapéu. Poucas mulheres. O chapéu voltou. Achava bonito, mas não conseguia usar um. Gostava mais de mulheres de chapéu.

      Fez a volta do quarteirão. Desistiu de ir à terapia. Retornou pelo mesmo caminho ao ponto de ônibus. Subiu no do sempre. Cumprimentou o cobrador, um velho conhecido dos tempos de boemia. Ele lhe sorriu conformado. O diálogo entre eles obedecia a uma sequência imutável:

– Firme?

– Levando.

– E o nosso time?

– Pro gasto.

      A última resposta podia variar para “agora vai”. Ou para “acho que agora vai”. Sentou-se na janela. Contemplou a Júlio de Castilhos com bonomia. Outra palavra que despertava suspeitas quando a usava. Desceu uma quadra depois da sua casa. Dividia o mundo em dois grupos: os que descem antes e os que descem depois. Passou pelo morador de rua, pelo velho que o chamava de doutor, pela moça que não o cumprimentava. O porteiro não estava no posto. Tinha certamente ido fumar. Entrou na caixa sozinho. O elevador parou no sexto andar. Ninguém puxou a porta. Pressionou o botão. Em casa, encontrou um bilhete sobra mesa da cozinha, em cima do jornal.

– Fui. Nossa relação não passou de um acidente de percurso.


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