Até os buracos de Porto Alegre

Até os buracos de Porto Alegre

Qualidades e defeitos da capital gaúcha

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      Ando por esta cidade, que há décadas chamo de minha, e me acho onde me perdi. Em breve, serão quarenta anos de convivência. No primeiro dia, eu a temi. Ao final do primeiro ano, eu a senti. Depois de dez anos, já a amava para sempre como um apaixonado de primeira hora ou um passageiro que perdeu o trem. Não conheço todas as suas ruas, mas me encontro repisando meus passos por onde um dia passei. Quando cheguei, ela era outra, embora seja sempre a mesma, debruçada sobre o seu rio, que para alguns é estuário, lago, algo vago entre correnteza e reservatório. Para mim, Porto Alegre terá sempre um percurso próprio, o percurso que eu fiz, que fizeram para mim, que me levou ao seu coração: Navegantes, Sarandi, Jardim Ipiranga, Partenon, Jardim Botânico, Cidade Baixa, Bom Fim, centro.

      Certas manhãs, quando atravesso a Praça da Alfândega, eu me comovo com as suas árvores, que conheço pelo nome, ou com seus pedaços sem qualquer cobertura. O solo se oferece ao olhar como a terra da infância de cada um. Então eu fecho os olhos e inspiro profundamente. A cidade entra nos meus poros com os seus perfumes, cores, flores nomes, lugares, lembranças, promessas e construções. Quando eu era jovem, caminhei a esmo, de noite e de dia, para ver se voltava a ser o mesmo de quando a amei pela primeira vez. Visitei os seus bares, os seus parques, os seus cabarés, os seus estádios de futebol, os seus templos e os seus recantos em busca de sombra, água pura, amizades, amores, amparo, um abraço, um porto seguro.

      Quando viajo, quando me afasto por mais de uma semana, é dela que sinto saudade, com ela é que sonho, a ela é que me declaro, nela que busco refúgio, para ela que reservo os meus dias. Eu me preocupo com o seu destino, fico furioso quando a destratam, sinto ciúme dos seus novos amantes, deito no seu regaço para me refazer do cansaço e das desilusões. No seu aniversário, ofereço-lhe rosas, orquídeas, pensamentos. O tempo passa. Sou eu que passo trilhando o seu território, descobrindo a sua beleza, lamentando as suas tristezas, odiando os que a maltratam. Quando eu morrer, quero que minhas cinzas sejam divididas entre Palomas, Paris e Porto Alegre. Tentarei deixar dinheiro para cobrir os custos da operação.

      Em certos dias, quando o sol se põe, eu a fito da minha janela com o coração apertado. Tenho medo de que não me reconheça. Afinal, quem sou eu diante da sua grandeza, dos seus feitos, dos seus homens e mulheres, dos seus heróis, das suas memórias? Então, angustiado, penso que tenho de fazer algo para, quem sabe, ela se lembrar de mim quando eu for embora, quando tiver de fechar o ciclo. Ontem, Porto Alegre festejou os seus 247 anos. É tanto e tão pouco. Ela conserva algo do seu passado. Talvez, bem pensado, esse jeito interiorano de se deitar à beira do rio. Mas ela também é metrópole, capital enorme, perigosa, balzaquiana, traiçoeira. Gosto de ouvir as suas melodias, de me escutar no seu sotaque, de fazer parte do seu imaginário. Nela, eu me perco, eu me acho, eu recomeço. Amo tanto Porto Alegre que até os seus buracos, que não são poucos, quando fazem aniversário, eu abraço.

     


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