Cão andaluz e cena comovente

Cão andaluz e cena comovente

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Um cusco amarelo me seguiu por três quadras no centro de Porto Alegre. Era um lindo cachorro vira-lata. Tão vira-lata quanto eu. A identificação foi imediata. Ele foi atrás de mim da praça da Alfândega até a prefeitura. Quando me aproximei da porta do prédio para me desviar de algumas pessoas, o cão deu volta para trás e se mandou correndo. Terá sido uma rejeição à administração do prefeito Nelson Marchezan Júnior? Senti vontade de adotar aquele cachorrinho. Mas tive consciência: sou de outra época. Já tive cachorro. Sempre no quintal.

Eu parava e olhava para ele, que se sacudia e me festejava como se fôssemos velhos amigos. Cheguei a pensar que, contrariando o ministro Gilmar Mendes, conhecido militante político do STF, era o rabo que balançava o cachorro, tanto o seu corpo seguia o ritmo da cola. Uma linda dança. O que ele terá visto em mim? Terá percebido que, no fundo, sou boa gente, meio ranzinza, meio tímido, meio no mundo da lua, meio sorumbático, mas gente boa mesmo assim? Pensei no título do filme surrealista, em preto e branco e mudo, de Luís Buñuel e Salvador Dali e o apelidei prontamente de “cão andaluz”. Havia uma luz fugidia nos olhos do animalzinho tão inconscientemente feliz. Um brilho de alegria e entrega sem qualquer temor ou restrição. Quando ele se foi, meus olhos o seguiram até que sumiu na esquina da Sete.

Ele parecia bem nutrido. Exibia pelos lustrosos e uma espécie de estrela branca na testa. Não me pareceu que só quisesse um pouco de comida. Não era um reles interesseiro. Corria como um guri contente da vida. Corria como eu quando me sentia dono do mundo, um mundo chamado Palomas. Um cão sem dono, sem plumas, sem medos e sem futuro. Já fui assim. Perdi as plumas, arranjei donos e medos. Tento enxergar o futuro. As reformas de Michel Temer me embaçam a vista. Posso ter exagerado por vaidade ao me convencer de que ele, de fato, gostou de mim. Eu gostei dele. Sempre tive uma queda acentuada por vira-latas.

Voltei para casa fixado no meu encontro com o “cão andaluz”. Achei que iria encontrá-lo no dia seguinte. Nunca mais o vi. Não era uma navalha que cortava um dos seus olhos, como a navalha de um homem cortava o olho de uma mulher no delírio de Buñuel e Dali. Era a própria vida, se me permito um devaneio, que faiscava como uma lâmina cortada passando nos seus olhos como numa tela de cristal líquido. Eu me vi ali. Eu vi ali o mundo passando num tropel. Passava homem contando dinheiro, passava mulher com flor no cabelo, passava carro buzinando, passava uma indiazinha com seus filhos, passavam todos.

Eu vejo tantas coisas quando atravesso o centro de cidade em transe a caminho do ônibus onde, enfim, posso sonhar por vinte minutos sentado à janela, essa janela que se abre para o universo, pois não me contento em ver apenas o que as imagens me mostram ou simplesmente uso-as para acessar outros mundos virtuais. Guardo carinhosamente na memória esse encontro com o cão andaluz. Nós, vira-latas somos puro afeto até com as nossas pulgas. Por um nada, sorrimos para desconhecidos. Por outro nada, partimos para sempre sem dizer adeus.

No dia seguinte, em frente ao Hospital de Clínicas, eu vi uma cena que me comoveu: uma mulher muita magra e curvada carregava nos braços uma criança, pelo tamanho, de quatro ou cinco anos de idade. Um pano cobria a cabeça do doente, que não se dobrava como normalmente faz quem é levado no colo. Era um corpo espichado, quase ereto, hirto, inflexível. Eu vi ali a imagem de uma mãe muito pobre carregando seu filho enfermo. Quantas vezes, morando entre dois hospitais, tenho visto isso? Incontáveis. Mas havia algo de diferente ou de singular. Já falei da postura da criança carregada como uma estátua de madeira. O que mais chamou a atenção foi o olhar da mãe para a criança: quanta ternura! Quanto amor! Quanto cuidado! Via-se que ela levava seu tesouro. Estava calor. Havia muito movimento. A rua fervia de gente.

Como qualquer um eu pensei no dia daquela mãe: quanto tempo teria esperado por atendimento? De onde tiraria dinheiro para comprar os remédios? Como faria para chegar em casa? Onde moraria? Teria almoçado? Que condução pegaria? Examinei os seus braços esquálidos e especulei sem otimismo: de onde tiraria forças para sustentar a criança sem se entregar no meio daquela gente, todos nós, apressada? Pensei: de fato este é o melhor dos mundos possíveis, o mundo onde multinacionais precisam de isenção fiscal para gerar nossos empregos.

Pensei no cão andaluz. Olhei novamente para a mulher com seu filho. Ela suava. O pano cobria o rosto da criança como um véu. Temi o pior. Fiquei sentimental. Passei a mão nos cabelos como quem tenta afastar um mau pensamento. Apressei o passo, enfiei a chave na fechadura, entrei no prédio ouvindo uma voz imaginária me perguntar:

– Que foi?

– Nada.

– Como nada?

– Um cisco no olho.

 

 

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