Capitalismo de emboscada

Capitalismo de emboscada

Vender soluções em vez de resolver problemas

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      Nasci anarquista. Tornei-me socialdemocrata. Sonho com o dia em que o Brasil será uma Suécia tropical. Sigo as ideias do liberal John Stuart Mill quando o assunto é liberdade de expressão, pluralismo, importância do contraditório. Como dizia um amigo, me contradigo, sim, pois meu sangue nunca coagula. Se precisar, tomo anticoagulantes. Conto a história. Pagamos por um serviço que inclui um e-mail. Uma desconfiguração levou a que o e-mail só receba mensagens. Parou de enviar. Feitas todas as tentativas possíveis, liga-se para o provedor. Duas horas de espera depois, trava-se este interessante diálogo:

– Não está funcionando mais.

– Certo, mas aqui é a assistência técnica.

– Então, é disso que precisamos. Se o serviço não funciona...

– Mas este é um serviço pago. Vou lhe passar para outro setor.

      Três tentativas e mais duas horas depois, novo atendimento:

– Vamos verificar as configurações.

– Vamos lá.

      Feita a tentativa, continua sem funcionar. O atendente então faz a primeira proposta: um mês de assistência grátis e mais filmes.

– Filmes?

– Nossa plataforma Play. Por 30 dias a R$ 29.90.

– E depois?

– Se não quiser, é só ligar e cancelar.

– Se não ligar?

– Fica valendo todo mês.

      Segue-se a explicação: não há interesse na plataforma, tudo o que se quer é que o serviço contratado funcione. Acrescenta-se que não se ligou para comprar isto ou aquilo, mas para resolver algo técnico.

– Neste caso, mande e-mail para nós e responderemos quando possível. Não posso, contudo, dizer em quanto tempo. Anote o protocolo.

– Mas o e-mail não envia.

      Claro que a solução é conhecida. Abandona-se o serviço e usa-se um e-mail gratuito. O case, no entanto, serve para ilustrar o que pode ser chamado de capitalismo de emboscada. Não se garante mais a entrega do serviço contratado, aproveita-se a ocasião da falha para empurrar outros produtos e condiciona-se a solução a uma aquisição forçada.

– Propomos o contrário. Aceitamos a oferta gratuita de um mês e, se gostarmos, ligamos para confirmar e manter o novo serviço. Pode ser?

– Ah, não.

      E assim as metas são alcançadas, os produtos vendidos e as relações estremecidas. Quem permite esse tipo de chantagem? Isso não representa claramente um abuso? Não, dizem os defensores, é só uma política agressiva de venda. Brasileiros, relaxamos. Vida que segue. Fica para trás um serviço usado durante 20 anos. Tempo demais. Dez dias depois da ruptura o telefone toca. É do velho provedor:

– Queremos estar entendendo a razão do seu cancelamento.

      Explicada a razão, vem a proposta absolutamente original:

– Podemos lhe oferecer um pacote gratuito por 30 dias com assistência técnica, Play e outros serviços. Ao final do período, se não quiser mais, é só ligar para a nossa central e pedir o cancelamento.

– Se não ligar?

– Fica valendo todo mês.

 


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