Crônica: na lona

Crônica: na lona

História de um nocaute

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Sullivan O’Connor II era uma lenda na sua rua. Treinado para ser um vencedor, tinha o olhar agudo de quem jamais duvida de si e dos seus. Durante muitos anos, dominou o seu quadrado. Não saía do seu reduto. Quando lhe falavam em voos mais altos, sorria como quem diz “tudo tem sua hora”. Fazia parte de um clã de lutadores que se viam como implacáveis e puríssimos. Ele mesmo se considerava o portador de uma nova forma de combate. Não entrava apenas para ganhar. Queria ser amado e seguido. O pai dele, Sullivan O’Connor I, chegara ao topo quando já não se esperava.

      O clã era formado por quatro destemidos e um séquito de oportunistas e de oportunos. Mas Sullivan O’Connor III preferia lutas pequenas, municipais, de bairro, embora fosse o predileto do pai por suas supostas capacidades de propaganda. Para alguns dos biógrafos da família, fora ele o responsável pela mitificação da marca que os definiria para sempre. Nesse tipo de luta, muito particular, pai e filhos podiam brilhar ao mesmo tempo. Aos poucos, os Sullivan foram ganhando adeptos. O estilo direto que praticavam impôs-se como o novo padrão quando Jess Bryan Kid foi preso e depois acusado por um dos membros da sua turma de receber dinheiro em caixas de uísque. Os zombeteiros diziam que Jess gostava do dinheiro, mas preferia as caixas de uísque.

      A virada no cenário abriu espaço para os voos mais altos de Sullivan O’Connor II. Era o tempo das grandes convulsões e do fim das utopias quando tudo se apagava e fanáticos se apresentavam à luz do dia. Ele se fardou e surgiu em cena como herói novo, abaixo apenas de Sullivan O’Connor I, que, nessa época, reinava absoluto de norte a sul. Especulava-se que Sullivan O’Connor II e Sullivan O’Connor IV digladiavam-se nos bastidores. Na verdade, complementavam-se. O olhar de Sullivan O’Connor IV mostrava mais raiva. Um olhar de cão treinado para atacar. Assustador.

      Tudo corria bem para os Sullivan até que surgiu um contratempo. Um pedregulho do passado recente que exigia uma explicação. Sullivan O’Connor II achou que poderia se livrar do embaraço com um peteleco. A pressão continuou. Os adversários queriam nocauteá-lo a qualquer custo. Ele via nesse encarniçamento uma tentativa de atingir Sullivan O’Connor I, que se esquivava do problema com provocações sobre outros assuntos palpitantes. Durante um mês o inalcançável manteve-se altivo e distante. Não cedia, não explicava, não esclarecia, não se dobrava. Até que deu um passo em falso. Tentou encerrar a polêmica com um safanão. Acertou o ar em cheio.

      Foi arrastado para um ringue sem que pudesse recusar.

Ainda sorria. Parecia ter uma carta na manga.

O olhar, porém, estava menos direto, levemente inclinado para baixo. As suas hostes dividiram-se. Uma parte se mantinha fiel a ele e ao clã. Outra parte, desconfiada, pedia esclarecimentos. Sullivan O’Connor II entrou certo de que venceria. Às 20h45, no horário nobre, diante de um público enorme, o maior da sua vida até então, levou um inesperado direto no queixo. Beijou a lona pela primeira vez. Seria o princípio do fim? Era cedo para afirmar. Para alguns, era o fim de uma ilusão. Para outros, uma manobra sórdida dos derrotados. Desde aquela noite, os Sullivan tramam a grande vingança. Nesse meio tempo, Sullivan III quase arrastou o patriarca para a lona.


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