Fiz um samba

Fiz um samba

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Eu queria ter nascido negro. Sou negro em pele de branco. A cultura negra brasileira é que mexe comigo. Sou metido. Mesmo desafinado e ruim de cintura, já escrevi muita letra de música. Não consigo cantarolar nem para mostrá-las. A primeira, quando eu tinha uns 20 anos, chegou a ser musicada por um amigo, um colega de aula, o Chico Camboim. Chamava-se “Tristana”. Eu estava impactado pelo filme de Luís Buñuel. Perdi o texto. Falava assim: “É feito de barro o sonho de um surrealista”. A música popular brasileira não sabe o que deixou escapar. Já fiz rap. Ainda outro dia fiz o “rap da república”. Alguém disse que ia botar música e mandar ver. Estou misturando tudo. Sou assim.

Não me comprometo com início, meio e fio. Pois fiz um samba.

 

Morro do Socorro

Subi no morro, subi no morro

Fui em busca de Socorro

Subi no morro, subi no morro

Quis sentir a alma do meu povo

Nunca é tarde pra nascer de novo

Subi no morro, subi no morro

Numa roda de cachorras encontrei Ana Patrícia

Hoje sei que a vida pode ser uma delícia

Subi no morro, subi no morro

Mas nem tudo é alegria

Ninguém samba todo dia

Subi no morro, subi no morro

De lá não desço mais

Se descer eu morro

Subi no morro, subi no morro

Não sei se o pessoal do samba vai aprovar essa história de roda de cachorras. Ia colocar roda de bambas, mas achei clichê. Samba e funk não dialogam? Na minha cabeça, tudo fala. Imagino este meu sambinha cantado por Glau Barros, por Zeca Pagodinho e por Neguinho da Beija-Flor. Sou modestamente megalomaníaco. Acho que seria uma excelente trilha para uma novela de televisão passada numa comunidade, a história de um cara que deixa o asfalto e vai viver numa favela.

Todo grande sambista é poeta. Quer poesia pura? Clara Nunes fez: “Dei um aperto de saudade/No meu tamborim/Molhei o pano da cuíca/Com as minhas lágrimas/Dei meu tempo de espera/Para a marcação e cantei/A minha vida na avenida sem empolgação”. Eu me arrepio. Eu me emociono. Sei que tem grande sambista branco. Noel Rosa é a prova sambada dessa afirmação. Chico Buarque também. Mas o samba para mim é negro. Maravilhosamente negro. Como o futebol. Ainda que o futebol possa ir do samba ao tango, é negro. Foi a negritude de Pelé que o fez reinventar o futebol assim como Pablo Picasso reinventou a pintura.

Receberei mensagens assim: “Que sambinha rastaquera, tchê! Que letrinha mais medíocre”. Não me abalo. Tenho o couro duro. Na solidão da minha mente consigo cantá-lo e gosto muito. Ouço aplausos e gente pedindo bis. É o que me basta. O resto a imaginação faz. Obra-prima. Modestamente, claro.

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