Maridos não matam mais?

Maridos não matam mais?

Fernando Carvalho garantiu que “não é hora de sacudir o vestiário”

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Estilo anacrônico

 

“Não sei se repararam, mas um pai não pode bater mais num filho para lhe dar educação nem um professor pode colocar um aluno de castigo”. Ouvi isso no ônibus. Em casa, corri para verificar uma frase parecida: “Não sei se repararam que os maridos não matam mais”. Era possível escrever crônicas assim no passado. Chamava a atenção. A frase é de Nelson Rodrigues. Ele justificava o seu começo impactante com uma lembrança de sua infância lá por 1920:  “As pessoas tinham honra. E, então, lavava-se a honra a tiros, lavava-se a honra a bengaladas”. Podia-se escrever assim até em títulos como “à sombra dos crioulões em flor”. Nelson Rodrigues hoje seria só o rei dos coxinhas.

Tem muito imitador de Nelson Rodrigues por aí sem o mesmo talento. Admira-se quem pode expressar a violência do senso comum sem sofrer as consequências reservadas à maioria. A fanfarronice e o sucesso provocam aquele tipo de inveja que se traduz em elogios sinceros. As pessoas gostam de quem tem pegada. O cronista de hoje ganha fãs e cativa um público certo se for definitivo como um avaliador passageiro: Lula é um ladrão safado. Sérgio Moro é um herói. O contrário também conquista adeptos: Lula é uma vítima. Moro, um canalha. O que mais desagrada é a busca do equilíbrio e da justeza:

– Escreve lá, vai: bandido bom é bandido morto mesmo.

O pai ainda deveria poder bater no filho? O professor deveria ter direito de castigar o aluno? Honra deve ser lavada com violência? Que honra? Ser traído é desonra? Bandido deve ser morto ou condenado pela justiça? Se bandido executa policial cruelmente, policial deve executar bandido? Não sei se já repararam que a violência do cronista é sempre maior e mais estilosa quanto mais ela coincide com a posição do dono do seu jornal. Um senhor me diz que falará o que pensa se eu não colocar seu sobrenome no texto. Quer ser identificado como Raul.

– Por que posso falar em alemoada e não em negrada?

– Pelo histórico de preconceito do segundo termo – arrisco.

– Que nada. É hipocrisia mesmo. Não se tem mais honra. Qualquer dia vou ter de pedir licença para ser branco, macho e chefe de família.

Tento argumentar que a questão é de respeito às diferenças. Raul não aceita o que digo. Antes de ir embora, dá o seu veredicto:

– Tudo começou a andar mal quando as famílias deixaram de ter chefe.

– Deixaram? – questiono na falta de algo melhor para dizer.

– Claro que deixaram. Família era homem, mulher e filhos. O chefe era o homem, o provedor, o esteio da casa. Hoje, tem de tudo. Esculhambaram a família, tiraram a autoridade do professor, criticam a polícia que atua com mais rigor contra bandido, querem o quê?

O cronista segue o seu tempo sem ter tempo de falar do tempo. Não sei se já repararam que cronista precisa ter posições definitivas a cada dia sobre coisas que perecem ao anoitecer. O cronista de antigamente podia chamar juiz de ladrão. Hoje, toma processo. Nelson Rodrigues falava do jogo sem enxergá-lo direito. Ficava melhor. O que falta ao jornalismo de agora não é objetividade, mas subjetividade, especialmente a subjetividade alheia. Não se mata mais pela honra. Evoluímos muito nesse tempo todo: agora só matamos sem motivo algum.

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