Poesia e pirataria intemporal

Poesia e pirataria intemporal

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Poetas desde sempre cantam a lua porque sabem dessa crueldade nua que é compor com as mãos vazias em tardes descoloridas de antemão. Como ser poeta num tempo de corrupção, de crise de utopias e de sonhos decididos na produção com marcas de fantasia e fantasias em seis vezes no cartão?

Como ser poeta quando silencia a vontade de andar na contramão e os pneus já não cantam a velocidade da paixão?

O homem dito comum na sua vida de ruminações incomuns, que jamais revela aos filhos e aos netos por vergonha de não ser sensato nem cordato como deve ser um cidadão de sapato preto, vai à feira, onde escolhe grave entre rúcula e alface, compra carro, limpa dos sapatos o barro, faz as contas do mês mexendo os lábios e as mãos, sofre no inverno com um catarro, anota velhos sonhos em alfarrábios mentais, olha o jogo do seu time na televisão e reza em silêncio para que nada de mal aconteça aos seus ao saírem de casa. Não lhe ocorre que vive parte do tempo na realidade e outra parte na imaginação.

Esse homem de todo dia, sisudo e afável, que por vezes se fantasia com nosso rosto, nossos documentos, nossa imagem, nossa identidade, nosso desgosto, nosso posto no mundo, não acredita na poesia. Para ele só existe a prosa da existência, essa linguagem corrente, moeda sem troco, que se faz respeitável por jamais ousar uma vírgula fora da curva, o que lhe turva a visão fazendo-o pensar que enxerga claramente em meio ao nevoeiro de cada segunda-feira atrás do seu balcão.

Todos os dias, trava o mesmo diálogo com seu vizinho, com seu colega, com seu amigo, como seu irmão, consigo mesmo:

– Então, tudo bem?

– Levando.

O bem maior do homem sem poesia são os seus bens, que lhe parecem duráveis por não sofrer a permanente corrosão do tempo e das metáforas usadas demais. Nas reuniões do COPOM do Banco Central da Poesia, que acontecem todo mês, as metáforas perdem meio ponto percentual a cada investimento em renda fixa. O mais estranho nesse ser pacato – o homo prosaicus – é que quanto mais ele vive para o material, essa ilusão palpável e concreta como uma nuvem passageira e suave, mais repete palavras, sempre as mesmas, de devoção ao espiritual.

Não, o homem prosaico não tem culpa de ser o que é. Não lhe apontemos o dedo. Não lhe acirremos o medo. Ele, que sofre de depressão e controla o temor da reforma da aposentadoria com rivotril, apenas encarna os hábitos que lhe foram inculcados com paciência na eficiente escola da vida. Se tivesse lido o louco francês Guy Debord, o que não o impedirá de ser feliz ou infeliz conforme o ciclo das experiências humanas, saberia que o “espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”.

Poetas roubam imagens da lua porque sabem que qualquer rua, por mais ladrilhada que tenha sido na infância de alguém, é milha que se tem de percorrer passo a passo, ignorando-se o cansaço, antes de se ver o sol e de morrer. Há poetas nostálgicos que retornam ao final da vida para a ver a rua onde nasceram. Morrem ao perceber que o tempo passa primeiro para o que nunca se apaga na imaginação e na memória. O poeta natural é o homem que não se tornou artificial mesmo que o pó do seu rosto seja pura maquiagem.

Todo homem, a generalização é necessária como um verso sem garantia, inclusive o mais prosaico e contido, é poeta mesmo sem saber disso. Poeta não praticante. Poeta em camisa de força. Nos desvãos da sua mente adormecida, onde se abriga um imaginário que ele sufoca com doses diárias de cautela, de pílulas coloridas e de comida sem glúten, esconde-se um feroz criador de imagens, um versejador comprimido que poderia implodir a realidade com um simples gemido ou uma rima.

Poetas repetem palavras e imagens, saqueiam, matam, roubam, pilham, invadem, ocupam, deturpam, conspurcam, manipulam, adulteram, reiteram, fogem, retornam, contornam, cercam, atacam, assaltam, pulam cercas, derrubam aramados, andam sempre armados, até os dentes armados de metáforas, metonímias, sinédoques, prosopopeias, figuras de linguagem, lembranças, epopeias, ficções, aragens, rimas, ritmos, ecos, aliterações, versões, versos e ventos estranhos que lhes empurram em todas as direções fora dos mapas. Poetas formam bandos, quadrilhas, aram terra alheia porque sabem que a arte é uma veia onde se injeta o sangue dos velhos piratas.

Poetas usam palavras corriqueiras porque têm as certezas derradeiras de que a morte é uma musa vadia. Musa que tira tudo e cobra caro. O fim chega sem as fanfarras do começo. Se essa imagem não é boa, mal escondendo preconceitos, o grande defeito do poeta é não saber escrever direito. Poetas cantam a lua como se ignorassem que ela é de todos desde a primeira vez que se deu a ver quase por inteiro pelo simples gosto de desfilar na passarela dos céus. Todo poeta é um caso perdido. Vive de aparências. Trai a todos por uma boa imagem. A sua obsessão é decifrar a natureza sem dar qualquer explicação. Poetas são perigosos. Nunca se sabe quando irão para a rua.

 

 

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