Que estátua o leitor derrubaria?

Que estátua o leitor derrubaria?

Cada época tem o direito de cancelar homenagens

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      Derrubaram e jogaram no rio a estátua de um comerciante de escravos em Bristol, na Inglaterra. Arrancaram a cabeça de Colombo, em Boston, nos Estados Unidos. Ameaçam a estátua de Borba Gato, bandeirante, racista, caçador de índios para escravização e outros crimes que as vítimas não poderiam considerar como legítimos valores da época. O acerto de contas com os pedestais está na ordem do dia. Há quem diga que não se deve derrubar o passado dos seus bronzes e mármores. Mas essas mesmas pessoas aceitariam estátuas de Hitler, Mussolini, Che Guevara e Mao? Ou só de alguns deles? Stalingrado ainda seria um bom nome de cidade para não apagar a história recente?

 

      No Brasil, de tantos heróis de biografia duvidosa e violenta, que estátuas correm perigo? No Maranhão, onde sob o comando de Caxias, os negros da Balaiada foram massacrados, poderia haver alguma indisposição contra algum busto do “pacificador”? A história é complexa e ambígua. Getúlio Vargas, que foi representante eleito das elites, revolucionário, ditador e presidente da República pelo voto direto, deveria ter o seu nome riscado de cidades, escolas, praças ruas e monumentos? Qual Getúlio prevalece? Qual é o homenageado? O Getúlio da legislação trabalhista e da Petrobras, empurrado ao suicídio pela sanha dos inimigos comprometidos com os interesses estrangeiros sonantes, suplantou o chefe do Estado Novo e obteve o perdão da posteridade?

      Que estátuas o leitor derrubaria? Ou recomendaria a retirada? Por que homenagear eternamente escravistas, genocidas, exterminadores de populações autóctones? Não seria interessante de tempos em tempos revisar homenagens e dar oportunidade a novos homenageados. Parafraseando Mario Quintana, há tanta rua esquisita com tanto nome de cujas histórias nunca saberemos. Por que mantê-los? Na próxima eleição para prefeito eu incluiria uma questão: devemos manter ou mudar o nome do marechal Castelo Branco, que comandou o golpe de Estado midiático-civil-militar de 1964, na avenida de acesso a Porto Alegre? O que essa distinção consagra: a figura de Castelo Branco ou o golpe de 1964?

      Por que continuar homenageando Borba Gato, Domingos Jorge Velho, Fernão Paes Lemes e outros traficantes de escravos indígenas? A acumulação primitiva do capital não é um conto de fadas. Certo. Precisamos, ainda, assim tratar como heróis esses protagonistas do abuso? Tem muita estátua correndo perigo por aí. Os fundamentos nacionais repousam sobre cadáveres. Em nosso caso, de índios e negros. A história quem tem sido contada ao longo do tempo é da vitória dos europeus sobre os índios do Novo Mundo, do saque das suas riquezas, da apropriação dos seus territórios e da exploração das suas terras com escravos transplantados da África. É simples assim. Como um clichê.

      Uma estátua de Borba Gato é uma louvação ao exterminador do passado, uma maneira de confirmar nossa legitimação aos seus feitos de outrora, um modo de dizer que ele fez bem capturando índios, que era assim mesmo naquele tempo, que graças ao que fez de bem e de mal ficamos maiores, mais ricos, mais poderosos e mais brasileiros. Que estátua o leitor derrubaria em primeiro lugar?

O capitão não tem estátua.


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