Sargento de milícias

Sargento de milícias

Era no tempo do Rei. Que tempo era esse?

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Passo a vida relendo livros que me apaixonaram.

É uma maneira de tentar enganar o tempo, esse espião que nos acompanha do começo ao fim e nunca nos poupa. Ao menor descuido, leva-nos com ele para a eternidade. Sei que não lerei todos os livros do mundo. Nem devo. Escolho voltar aos que me deram grandes momentos de prazer. Triste é ter de perder tempo com obras que falsificam a história só para provar o quanto elas mentem e são daninhas para a sociedade. As redes sociais minarão a democracia permitindo a disseminação de teses fraudulentas para fanáticos em busca de teorias da conspiração?

Acabo de reler “Memórias de um sargento de milícias”. De repente, me veio uma vontade de incontrolável de mergulhar nesse clássico de Manuel Antônio de Almeida. Por que mesmo?

Sei lá.

Talvez seja só por causa do tema.

O romance, publicado como folhetim em jornal, acontece no Rio de Janeiro do século XIX, época em que a cidade sofria com problemas de toda ordem. É uma história de malandros e de malandragem. Os personagens da obra, na linguagem da teoria literária, são “planos”. Nunca mudam. Nascem tortos e morrem tortos. Não se dão o trabalho de alterar o rumo da existência.

      Qual é o centro da narrativa? Os pequenos golpes de cada dia. O protagonista não chegou a ser um grande aluno: “À custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre que o menino frequentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior”. A pedagogia da época não podia ser acusada de leniente.

O professor ensinava armado.

Podia recorrer à palmatória para incutir os bons valores: “Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos; e apesar da fama que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto, é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele: o menino tinha a bossa da desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais refinada má-criação que se pode imaginar”.

      Que tempos! A pedagogia da paulada não surtia efeito. Tudo era diferente. Até o sentido da palavra milícia. O narrador trata de revelar a singularidade do tempo em que se passa a história: “Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado”. Como seria se já existisse a internet?

Imaginário ­– Não há determinismo histórico. O passado influencia o futuro, mas não o impõe. Será mesmo? Não é o momento para esse tipo de polêmica. Como era o imaginário daqueles dias? Assim: “Durante os 9 dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não sabemos se antes disso,
 saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril”. Como se vê, já fomos mais festeiros.

      Para não politizar a leitura, vou ignorar essa história de meninos de calção e sapatos cor-de-rosa. Não sou desses que procuram motivo para implicar. Mas confesso que sempre gostei de rosa. Leonardo foi abandonado pelos pais. A sorte garantiu-lhe um padrinho de moralidade heterodoxa. Graças a essa proteção, virou sargento de milícias. Contar com um pistolão era comum naquele tempo do Rei. Só se achava o Estado gigante quando nada se obtinha da parte dele.

      Quem representava a ordem? “O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial”.

      Era o dono do pedaço. Controlava o seu território. Um colosso. A releitura de “Memórias de um sargento de milícias” me abriu os olhos para muitas associações entre o passado e o presente. Aqui vai uma delas: “Dizem todos, e os poetas juram e trejuram, que o verdadeiro amor é o primeiro; temos estudado a matéria, e acreditamos hoje que não há que ar em poetas: chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor, ou são todos ou é um só, e neste caso não é o primeiro, é o último. O último é que é o verdadeiro, porque é o único que não muda. As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam-me do contrário, se são disso capazes”. Leonardo, embora não fosse de poupar, acumulou cinco heranças.


      

 

 

 

 

 

 


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