Um estranho marcador de páginas

Um estranho marcador de páginas

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Não desejo para o meu pior inimigo o que me aconteceu. Acordei e fui ao banheiro. Estava faltando alguma coisa. Era o meu instrumento. Kafka não imaginou situação pior. Acordar transformado num inseto é pinto pequeno perto de despertar sem pênis. Voltei até a cama e sacudi os lençóis para ver se estava entre eles. Nada. Comecei a ficar deveras inquieto. Primeiro vieram as preocupações pragmáticas: como eu ia fazer xixi? Depois, vieram as lúdicas.

Examinei todos os lugares onde poderia ter esquecido o dito cujo. Não o encontrei. Revirei as gavetas. Não me parecia verossímil que o tivesse guardado junto com o passaporte, ainda que, no estrangeiro, não se deva andar sem eles. Encontrei um revólver. Tentei colocá-lo no lugar do elemento perdido baseado na série de comparações ouvidas ao longo da vida. Não se encaixou. Lembrei-me de um amigo, o Pelicano, que só falava do seu pênis na terceira pessoa:

– Ele sabe o que quer – dizia.

– Ele quem?

– Minha arma.

– Como assim?

– Ele sabe o que faz?

– Quem mesmo?

– Minha bazuca.

– É grande assim?

– Eu o chamo de Pelé.

– Pelé?

– É matador. É dez. Já fez mais de mil gols. É o cara.

O revólver que achei era de brinquedo. Disparei contra a parede. Negou fogo. Continuei as buscas. Olhei até no micro-ondas. Felizmente não estava lá. Tentei ler Freud para saber se esse tipo de situação é comum. Não avancei na leitura. Um tanto árida. Olhei embaixo da cama. Um latifúndio improdutivo. Teria esquecido no lotação, no ônibus, no táxi? Nunca o uso fora de casa. Não o desencaixo quando vou ao banheiro. Não o tiro do lugar para limpar.

Comecei a pensar em pedir ajuda. A quem recorrer? Surgiu um problema de ordem discursiva. Como chegar para alguém e dizer:

– Perdi meu pênis.

– Perdeu?

– Onde?

– Aí é que está. Não sei.

– Ah, isso é como perder guarda-chuva. Não dá bola.

– Hã!

– Deve estar encostado em alguma parede. Ou alguém o levou por engano. Tem gente que pega as coisas sem olhar e vai embora.

Comecei a suar. Já me via envolvido num escândalo. Imaginava as manchetes dos jornais. Seria entrevistado em programas sensacionalistas. Teve um homem, numa história célebre, que perdeu o nariz. No conto de Gogol, o nariz decide sair de casa e ter vida independente. Deve ter levado ao pé da letra a ideia de cuidar do próprio nariz. Meu pênis não tinha qualquer razão para se mandar.

No desespero, fiz o que sempre faço para me acalmar, comecei a abrir livros. Algum teria o poder de me fazer pensar com método. No terceiro livro que abri, sem muita concentração, lá estava ele, o dito cujo, firme, marcando a página. Que alívio. Ufa! Olhei para os milhares de livros da minha biblioteca e me senti um sortudo.

– Ele poderia ter ficado no meio de um livro para sempre – pensei.

Em que livro ele estava perdido? Na excitação da descoberta, coloquei o volume no lugar sem olhar o título.

Nunca mais saberei.

 

 

 

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