Cría cuervos...

Cría cuervos...

Frustração resume a indicação feita pelo presidente Jair Bolsonaro

Guilherme Baumhardt

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Na lista – se é que houve uma algum dia – tínhamos nomes como Ives Gandra Martins Filho, jurista conceituado. Não é "terrivelmente evangélico", mas é católico e tem perfil conservador. Outra opção seria Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, desembargador e que até pouco tempo atrás presidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Leitor voraz, profundo conhecedor do direito, é reconhecido como uma das grandes cabeças do judiciário nacional. Ou ainda André Mendonça, de currículo talvez mais enxuto do que os dois citados acima, mas também mais novo. Não seria uma opção ruim. Terminamos com Kassio Nunes Marques, que é um famoso, famoso... famoso sei-lá-o-quê. Não é católico, não é evangélico, não é conservador e não se tem notícias de que seja um grande pensador do direito. Foi, sim, alvo de 33 representações junto ao Conselho Nacional de Justiça, a maior parte por demora no julgamento de processos, e a maneira como chegou ao Tribunal Regional Federal da 1a Região eu comento a seguir.

Frustração resume. É como se fôssemos dormir sonhando com a seleção de 1970, de Pelé, Rivelino e Tostão, com o tricampeonato do mundo, com os gols de Jairzinho e os passes de Gérson, mas acordássemos no meio da noite após um pesadelo protagonizado por Paolo Rossi e o naufrágio da seleção de 1982, ou ainda com Claudio Caniggia e a tormenta argentina de 1990.

O que moveu o presidente Jair Bolsonaro na direção da escolha que fez (já publicada no Diário Oficial da União) podemos debater. A resposta talvez se apresente ali na frente. Se temos dúvidas quanto a isso, temos a certeza de que havia nomes melhores. E na primeira oportunidade de redesenhar o Supremo Tribunal Federal, este poder que hoje julga, condena, legisla e governa, Bolsonaro apontou a espingarda para o próprio pé e puxou o gatilho. E com vontade. Meteu chumbo nas promessas de campanha, acertou grupos que o apoiam, atingiu a base aliada e deixou insatisfeitos até mesmo ferrenhos defensores do seu governo. Deixou, porém, gente muito feliz. O centrão e o PT – que por meio do governador do Piauí, Wellington Dias, e da ex-presidente Dilma Rousseff fez Kassio chegar ao Tribunal Regional Federal da 1a Região.

O magistrado em questão poderia muito bem ascender um dia ao STF. No futuro. Mas imaginava-se que isso ocorreria pelas mãos de um governo de esquerda, não em uma gestão Bolsonaro. Querem uma prova? O presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, que já foi candidato pelo Partido dos Trabalhadores anos atrás, que já disse que o presidente da República tem desvio de caráter, entre outras coisas, gostou da escolha de Kassio!

Nos Estados Unidos, Donald Trump indicou Amy Coney Barrett para a vaga aberta com o falecimento de Ruth Bader Ginsburg. Lá a crítica do Partido Democrata é de que o topetudo republicano deveria esperar o resultado das eleições antes de indicar alguém para a cadeira. Mas ninguém questiona a capacidade de Barrett para o cargo.
Alguns sugeriram que o nome de Kassio para a vaga já trouxe benefícios, como a decisão do STF que autorizou a venda de refinarias da Petrobras sem a necessidade de aprovação do Congresso. Será? Mesmo que uma coisa tenha relação com a outra, parece um preço caro demais. Basta lembrar que o novo indicado deve permanecer por quase 30 anos no STF. Valeu a pena? Cabe ao Senado agora referendar a escolha. Pela tradição, dificilmente barrará a indicação.

Cría cuervos y te sacarán tus ojos ("cria corvos e eles lhe arrancarão os olhos"). A frase famosa e dita com frequência nos países hermanos, como Uruguai e Argentina, nos leva à pergunta: quem corre o risco de ser apunhalado? Bolsonaro, com uma indicação que contradiz o que defendeu? Ou a população, que esperava uma coisa e recebeu outra? Quem perderá os olhos? Ou ainda e talvez mais importante: quem é o corvo na história?


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