Rogério Mendelski

As veias abertas do crime organizado

O que vimos na última terça-feira foi o confronto da ordem e da lei, não apenas contra grupos armados da nata do banditismo nacional, mas um enfrentamento contra um sistema de poder. Poder este que se revela como uma instituição paraestatal que cobra taxas, impostos, regula funcionamento do comércio, impõe normas sociais e até oferece “proteção” a quem cumpre as “normas constitucionais” do narcoestado da bandidagem.

A ação policial do governo fluminense nos complexos do Alemão e da Penha pode – como diz parte da imprensa brasileira – ter sido mais uma operação para “enxugar gelo”, mas por trás dos tiros, dos gritos, dos mortos no confronto, pulsa uma ferida aberta há décadas: o crime organizado no Brasil. São sintomas de uma doença sistêmica, enraizada nas veias contaminadas do Estado, da sociedade e da economia. Aqueles corpos seminus expostos em praça pública nos remetem à Faixa de Gaza, onde mais do que uma demonstração do resultado de combates entre forças beligerantes, são instrumentos para a continuidade da parte dois da violência, agora com os ingredientes para a guerra midiática que engloba simpatizantes do crime organizado contra a sociedade desorganizada, hoje refém de quem tem poder de influenciar o que resta do lado decente deste país. O que vimos na última terça-feira foi o confronto da ordem e da lei, não apenas contra grupos armados da nata do banditismo nacional, mas um enfrentamento contra um sistema de poder. Poder este que se revela como uma instituição paraestatal que cobra taxas, impostos, regula funcionamento do comércio, impõe normas sociais e até oferece “proteção” a quem cumpre as “normas constitucionais” do narcoestado da bandidagem. Olhando com uma lupa é possível de se ver a ocupação criminosa pelo vazio deixado pelo Estado ausente, uma constatação assustadora de controle territorial com a exibição de uma força armada, tão sofisticada que exibe e aciona drones com granadas, rádios criptografados e rede de informantes. As veias do crime organizado não agem apenas nos morros cariocas; elas atuam nos gabinetes mais poderosos do país, têm representantes parlamentares, policiais corruptos, servidores cooptados. Sem enfrentamento político e institucional, qualquer operação será mais gelo a ser enxugado. Não bastam efetivos policiais e militares, nem blindados com lagartas, pois a cada operação realizada, muitas com êxito, como a do dia 28 deste mês, uma pergunta fica sem resposta: quem vai controlar o território conquistado com a fuga dos chefões no dia seguinte? O combate ao crime, mas com a falta de educação, emprego, atividades culturais e recreativas, esgoto e saneamento básico, será apenas a tentativa de estancar o sangramento de uma veia com gaze ou um pano limpo por cinco ou dez minutos. Mas o crime organizado em ação tem muitas veias abertas e o sangramento da Nação vai continuar a dar golfadas até que esse terror urbano seja desconstruído como sistema de poder.

Dilema real

Não podemos aceitar que o combate ao crime se resuma a operações pontuais e espetaculares. Não podemos aceitar que a polícia seja lançada como escudo humano, sem apoio, sem estrutura, sem continuidade. E não podemos aceitar que o Estado esteja infiltrado pelo próprio crime que deveria combater. O crime organizado não é um inimigo externo. Ele está entre nós. Nas instituições, nos gabinetes, nas campanhas financiadas por dinheiro sujo.

Muito além de tiroteios

Não se combate o crime apenas com balas. Se combate o crime com presença, com justiça, com oportunidade. As veias abertas do crime organizado só vão cicatrizar quando o Estado deixar de ser ausente e passar a ser presente. Quando deixarmos de tratar a favela como território inimigo e passarmos a tratá-la como parte do Brasil que queremos construir.

El Salvador é exemplo?

O modelo de El Salvador é mais radical e centralizado, com foco em controle total e repressão, enquanto o Brasil adota uma abordagem mais fragmentada, com limitações legais e institucionais. Embora o modelo salvadorenho tenha reduzido a violência, ele levanta sérias questões sobre democracia e direitos humanos. No Brasil, o desafio é equilibrar eficácia no combate ao crime com respeito às liberdades civis e à Constituição.

Tolerância zero

El Salvador está combatendo o crime organizado com uma política de “tolerância zero” liderada pelo presidente Nayib Bukele, que envolve prisões em massa, militarização das ruas e suspensão de garantias constitucionais. Essa abordagem tem reduzido drasticamente os índices de violência, mas é alvo de críticas por violações de direitos humanos.

O resultado salvadorenho

El Salvador saiu da lista dos países mais violentos do mundo. Nayib Bukele foi reeleito em 2024 com mais de 85% dos votos, impulsionado pela queda nos homicídios e pela sensação de segurança.