Agroecologia na produção leiteira exige paixão

Agroecologia na produção leiteira exige paixão

No Rio Grande do Sul, apenas cinco propriedades têm certificação para produzir leite e derivados orgânicos, conforme dados do Mapa, e não medem esforços para levar à mesa do consumidor um alimento sustentável

Denise da Rosa e o pai, Armindo da Rosa, em Novo Hamburgo, agora concentram produção de leite em seu sítio, onde mantêm laticínio

Por
Patrícia Feiten

As preocupações com saúde e preservação ambiental impulsionam cada vez mais o interesse pelos alimentos orgânicos. Em razão das práticas complexas que envolvem a produção agroecológica, a oferta de produtos ainda é fortemente limitada a hortaliças, frutas e itens industrializados de origem vegetal. Na cadeia agropecuária gaúcha, por exemplo, há apenas cinco propriedades rurais certificadas para a produção de leite orgânico, de acordo com dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Na base dessas iniciativas pioneiras, está a paixão por entregar ao mercado um ingrediente básico na mesa do brasileiro com um carimbo sustentável.

A produtora Denise Barbaro da Rosa é um desses empreendedores rurais que conseguiram aliar a produção leiteira ao manejo agroecológico. Dona do Sítio Amigos da Terra, propriedade certificada pela rede Ecovida situada em Lomba Grande, na zona rural de Novo Hamburgo, sua família mantém uma padaria orgânica e, em 2016, montou um laticínio para elaboração de iogurte natural, doce de leite e queijo orgânicos com a matéria-prima fornecida por outro pecuarista certificado. Como o produtor parceiro decidiu deixar a atividade, seus animais estão sendo adquiridos pelo sítio – cinco vacas, de um lote inicial de nove, já foram transferidas para o local e a propriedade aguarda apenas a emissão do já aprovado certificado de conformidade necessário para a produção do leite

“Nesse tempo todo, a gente plantou pasto, criamos espaços pensados para as vacas, porque no sistema orgânico o animal precisa ser o mais livre possível. Então, houve todo um preparo para receber os animais”, relata Denise. Com a produção de leite concentrada no sítio, a família espera ter matéria-prima regular para manter a agroindústria em operação o ano todo e abrir novos canais de mercado. “Ele (o pecuarista parceiro) ficou com novilhas, que vão dar cria em setembro e outubro, então já estamos programando um aumento de produção”, diz a produtora. Entusiasmada com as mudanças, a família já está inscrita para participar neste ano do Pavilhão da Agroindústria Familiar na 46ª Expointer, que será realizada de 26 de agosto a 3 de setembro, em Esteio.

Os projetos de crescimento, segundo Denise, ganharam uma boa perspectiva também com o Plano Safra 2023/2024. Anunciado em junho, o programa federal trouxe incentivos à produção agroecológica, como juros menores nas linhas de crédito para custeio e investimento do Pronaf, voltado aos agricultores familiares. “O orgânico nunca apareceu nessas linhas, isso enche a gente de expectativa de que vai melhorar”, avalia a produtora. Ela também vislumbra oportunidades no prometido reforço em compras públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A lei determina que no mínimo 30% do valor repassado a Estados e municípios no programa seja usado na aquisição de alimentos de pequenos agricultores e empreendedores rurais. 

De acordo com dados da plataforma Observatório do Leite Orgânico, projeto de pesquisa da Embrapa Gado de Leite iniciado em 2021, no Brasil existem 119 pecuaristas cadastrados para a produção de leite orgânico – em muitos casos, há mais de um produtor por propriedade. O total de animais em lactação é inferior a 6 mil exemplares e corresponde a uma produção de 59 mil litros de leite por dia, com uma média de 667,5 litros por unidade produtiva. Em todo o país, a pecuária conduzida nesse sistema de manejo ocupa 6,5 mil hectares, e as fazendas têm em média 73,9 hectares. “São mais propriedades pequenas, 46,7% têm menos de 50 hectares”, afirma a pesquisadora Fernanda Samarini Machado. 

O médico veterinário Carlos Roberto Vieira da Cunha, extensionista da Emater/Ascar-RS, explica que a produção do leite orgânico é diferente do sistema adotado na pecuária leiteira convencional e segue normas do Mapa. A conversão das propriedades para esse modelo envolve um planejamento cuidadoso. Uma das peculiaridades é a alimentação dos animais. Tanto as pastagens quanto o milho (silagem) e o farelo de soja usados na ração das vacas devem ser cultivados sem uso de agroquímicos e não podem ser transgênicos. “Uma vaca (Jersey) de 400 quilos vai comer quase 50 kg por dia de alimento orgânico, então começa aí a dificuldade”, exemplifica Cunha. 

Para garantir um bom volume de leite diário, é preciso também suplementar a dieta dos bovinos com complementos protéicos. “E aí não tem essa disponibilidade de soja, que é geralmente o principal insumo. A gente tem de importar. Tu dependes de outra cadeia produtiva para conseguir produzir na propriedade”, observa o extensionista. 
Outro desafio da produção de leite orgânico é o controle de doenças, que utiliza apenas medicamentos homeopáticos e fitoterápicos e se baseia em uma abordagem preventiva – apenas em caso de risco de vida do animal são usados antibióticos, por exemplo, e ele é retirado da produção no período do tratamento. “Os pacotes tecnológicos que nós temos são todos de químicos. Então, é uma proposta totalmente diferente. O produtor rural tem de estudar, se acostumar com uma outra lógica”, afirma Cunha.

Para obter a certificação e poder estampar o selo de orgânico em seus produtos, os produtores precisam buscar um organismo acreditado pelo Inmetro para a avaliação de conformidade. Eles podem contratar uma auditoria privada ou, o caminho mais comum, adotar o sistema participativo, explica a médica veterinária e auditora fiscal federal agropecuária Michele de Castro Iza. Em ambas as alternativas, o selo é concedido pelo Mapa, mas no segundo caso as auditorias são feitas coletivamente pelos próprios produtores, o que reduz os custos do processo. “No momento rm que se verifica uma não conformidade em um produtor, todo o grupo é penalizado. Então, eles têm muito interesse em que funcione e todos estejam trabalhando de forma correta”, afirma Michele. 

Outra vantagem do modelo participativo, segundo ela, é a troca de conhecimento entre os pecuaristas. “Essa é uma parte importante do sistema. Eles estão sempre se atualizando, aprendendo uns com os outros”, destaca Michele.

Vaca dada de presente mudou destino de casal

Thiago e Camila, em vez abater animal recebido de um vizinho, aprenderam a ordenhar e, surpresos com a produtividade, decidiram iniciar o rebanho leiteiro e um laticínio em Viamão, certificado como orgânico há três anos

Camila e Thiago de Freitas e o sócio Rodrigo Sassi Fantoni administram o Laticínio Benolle, que usa cerca de 3 mil litros de leite por mês na produção de queijos, doce de leite e ambrosia | Foto: Arquivo pessoal / CP.

Produtores de leite e lácteos orgânicos, Thiago Benetti de Freitas e Camila Leipelt de Freitas têm uma história curiosa. Residentes em Porto Alegre e recém-casados, eles decidiram trocar a agitação da Capital pelo clima bucólico de uma propriedade rural em Viamão. Na época, ganharam de presente de um vizinho uma vaca holandesa, para que fosse abatida e garantisse um estoque de carne para a família. Em vez disso, aprenderam a ordenhar o animal, que, para a incredulidade do próprio vizinho, foi produzindo cada vez mais litros de leite e incentivou o casal a investir em um rebanho leiteiro. “A vaca começou dando dois litros de manhã e 1,5 litro de tarde. Em menos de um mês, chegou a 20 litros”, recorda Camila. 

Hoje, além da propriedade em Viamão, eles administram uma granja em Glorinha, onde mantêm 15 vacas das raças Jersey, Holandesa e Jersolando, com uma produção média de 3 mil litros de leite por mês. A fazenda também abriga hoje o Laticínio Benolle, fundado pelo casal há 15 anos em Viamão e depois transferido para o município vizinho. Na pequena agroindústria, fabricam mensalmente em torno 230 quilos de queijos (tradicional e temperado), 55 quilos de doce de leite e 10 quilos de ambrosia. 

Segundo Camila, a opção pelo sistema agroecológico foi motivada por preocupações com a saúde do primeiro dos quatro filhos do casal, que tinha dificuldades em digerir alimentos com conservantes. O modelo de certificação adotado foi o participativo, por meio da Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (Rama). Eles conquistaram o selo de orgânico para a industrialização dos lácteos há três anos e, atualmente, todo o leite extraído das vacas é destinado ao laticínio. “Fizemos um rastreio genético das nossas vacas, nosso rebanho é constituído, em 70%, de vacas A2/A2”, observa a produtora. Os animais desse tipo, explica, proporcionam um leite com composição diferenciada, o que o torna indicado a pessoas alérgicas à proteína do produto.

Tanto no campo quanto no laticínio, o conceito orgânico significa uma operação minuciosa e complexa. O milho e o farelo de soja usados na dieta das vacas são adquiridos de uma empresa certificada paranaense, já que as sucessivas estiagens no Rio Grande do Sul dificultaram os planos da granja de atingir a autossuficiência na produção de grãos. Para prevenir doenças como mastite e problemas causados por vermes e parasitas, os animais são tratados com oito tipos de medicamentos fitoterápicos. 

A ordenha, feita no sistema de balde ao pé, no qual o leite é depositado em um recipiente e depois transferido ao tanque de refrigeração, busca preservar o bem-estar animal. “A gente não amarra as vacas para ordenhar, ninguém grita. Até os três meses de idade, não tiramos o terneiro ou a terneira (da vaca-mãe), ficamos com o que nos sobra do leite. Então, temos o desafio de encontrar gente que queira trabalhar dentro desse molde”, diz Camila. 

Dentro da agroindústria, os proprietários seguem uma rotina de cuidados, que vão desde o uso de produtos não químicos na limpeza de equipamentos até testes do leite produzido na granja. Tudo para atender aos requisitos dos serviços de inspeção de produtos de origem animal, que possibilitam ao laticínio comercializar seus produtos em todo o território nacional. “Hoje, temos 42 planilhas de autocontrole na fábrica. Tem planilha para controlar a quantidade de pH e cloro da água, a temperatura e umidade da câmara fria. Mas isso é bom, porque te dá uma garantia no processo e permite vender no país”, destaca Camila.

Atualmente, os itens da marca Benolle são vendidos diretamente a clientes em feiras agroecológicas realizadas em Porto Alegre. Mas os proprietários pretendem aumentar gradativamente o rebanho e a produção de leite, ampliando também a oferta dos lácteos. A expansão ajudaria a compensar, por exemplo, as despesas com frete na compra de soja e milho fora do Estado, que acabam pesando nos custos de produção. “É um projeto que foi feito pensando em rentabilidade, mas não em curto prazo, e estamos estudando aumentar a produção para chegar a um ponto de equilíbrio”, afirma a pecuarista.

Produtor de Tapes revê industrialização

Miniqueijaria instalada em Tapes por Mauro Gouvêa chegou a produzir 120 quilos de queijo por mês com leite orgânico, mas está desativada desde dezembro | Foto: Arquivo pessoal / CP.

Com propriedade no município de Tapes, o produtor Mauro Gouvêa se dedica à criação de gado Jersey desde 1987. Avesso a agroquímicos, ele começou a utilizar composto orgânico na adubação nos anos 90 e foi pioneiro em sua região a trabalhar no sistema voisin, método intensivo de rotação de pastagens e manejo do rebanho em que a área de pasto nativo é dividida em pequenos piquetes e os animais ficam pouco tempo na mesma subunidade. “Eu chamava atenção do pessoal, porque cheguei a criar 4,3 animais por hectare, isso é bastante em relação ao sistema tradicional”, conta.

Ao longo do tempo, Gouvêa foi equipando a propriedade para operar no sistema agroecológico. Em 2007, instalou uma miniqueijaria e passou a usar todo o leite produzido por seus animais na elaboração de queijos coloniais, sob a marca Flor do Araçá. “Fui vendendo o queijo, ainda não tinha selo de orgânico, mas eu era uma pessoa que tinha todo o desenvolvimento de uma propriedade orgânica”, explica o produtor. Ele obteve a certificação para a agroindústria em 2018, por meio da rede participativa Ecovida. Segundo Gouvêa, sua propriedade chegou a ter 63 animais e 24 vacas em lactação, com uma produção mensal de até 12 mil litros de leite por mês. “A cada mil litros de leite, eu conseguia produzir de 110 a 120 quilos de queijo, dependendo da época do ano”, diz.

Em dezembro do ano passado, porém, ele decidiu interromper a produção dos queijos. O rebanho conta hoje com 15 vacas e novilhas, e o produtor avalia se retomará a industrialização, passará a fornecer leite in natura a outras indústrias ou se venderá os animais. “O meu queijo é muito conhecido aqui na região, foi muito aceito, me ajudou. Só comecei a ‘respirar’ um pouquinho no momento em que eu transformei a matéria-prima em queijo, porque agregou valor ao produto”, destaca o pecuarista, que também operou na venda de matrizes. 

Um dos planos em andamento, segundo Gouvêa, é transformar a propriedade em uma unidade de capacitação sobre manejo agroecológico, para qualificar outros produtores, estudantes, técnicos e extensionistas rurais. O projeto, desenvolvido em parceria com uma especialista em agricultura biodinâmica, busca disseminar esse modelo como alternativa para a implantação de uma pecuária limpa e sustentável. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895