Ancestralidade que funda o futuro

Ancestralidade que funda o futuro

Orientada por diretrizes curriculares específicas desde 2012, a Educação Escolar Quilombola é fundamental para a promoção da equidade racial e valorização dos saberes de povos e comunidades tradicionais no país

Para Larissa Costa, o Quilombo dos Machado, onde vive, é lugar de festa e acolhimento

Por
Gabriela Sardi

Se todos os quilombolas do Rio Grande do Sul fundassem, juntos, um município, ele seria maior que 76% das cidades gaúchas. São 17,5 mil pessoas, segundo identificou, pela primeira vez na história, o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em todo o país, a pesquisa contabilizou 1,3 milhões de quilombolas distribuídos em 8.441 territórios – a maior parte deles, 98%, não titulado pelo governo federal.

Dentro desses territórios, por vezes, há escolas – as chamadas escolas quilombolas. O Censo Escolar de 2020 contabilizou 2.526 dessas instituições em todo o território nacional. Juntas, elas atendem 275 mil alunos e empregam 51 mil docentes.

Desde 2012, o governo federal reconhece as especificidades da educação formal para as comunidades quilombolas. Em 20 de novembro daquele ano, uma resolução do Conselho Nacional de Educação definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. A resolução determina que escolas localizadas em território quilombola ou que atendam a estudantes quilombolas fora de suas comunidades de origem devem desenvolver pedagogia própria, em diálogo com a memória, as práticas e os saberes dos povos quilombolas. Essas instituições precisam ter corpo docente com formação específica em Educação Escolar Quilombola, além de materiais didáticos específicos que representem a diversidade sociocultural das comunidades quilombolas.

Porém, na prática, a realidade é outra. Dados do Censo Escolar 2020 apontam que apenas 3,2% dos professores de escolas quilombolas realizaram cursos voltados às temáticas da educação das relações étnico-raciais ou cultura afro-brasileira e africana. Além disso, apenas um a cada dez municípios brasileiros possuem projetos voltados à educação quilombola, segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2021 do IBGE.

“Nós estamos ainda muito distantes de ver essa política acontecer. É necessário vontade política, mas a grande barreira é o racismo institucional”, considera Alan Brito, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Coordenador do projeto Zumbi-Dandara dos Palmares, que estuda os desafios estruturais e pedagógicos da Educação Escolar Quilombola (EEQ) na promoção da equidade racial no país, Alan entende que a efetivação integral dos princípios da EEQ começa mesmo fora de sala de aula, na titulação dos quilombos. “É impossível criar um projeto de educação sem que a questão do território esteja presente. O jeito de ser e de viver dos quilombolas é muito conectado com a terra, não no sentido de propriedade, mas de vivência”, diz. Das 203 localidades quilombolas identificadas pelo Censo 2022 no Rio Grande do Sul, 106 ainda estão aguardando titulação do Incra, a autarquia federal responsável pelo reconhecimento de quilombos.

Por um lugar melhor

Para Larissa Costa, de 8 anos, quilombo é um lugar de acolhimento e festa. Aluna do 2º ano na Escola Municipal de Educação Básica (EMEB) Dr. Liberato Salzano Vieira da Cunha e moradora do Quilombo dos Machado, ambos na zona norte da capital, ela é tão habituada à vida em coletivo que não concebe uma realidade em que as pessoas não ajudem umas às outras. “Acho que em todos os lugares que têm casa é assim.” Na escola, Larissa aprende sobre a cultura e história afro-brasileiras e brinca com bonecos “pretinhos e de cabelo cacheado” que, segundo ela, só existem por lá.

As “duas casas” de Larissa, a Liberato e o quilombo, mantêm um diálogo próximo entre si. Na sede da escola, inclusive, o espaço da biblioteca dedicado às culturas afro-brasileira e indígena foi batizado de Maria Olmira Machado, em homenagem à fundadora do quilombo. Para a professora Daniele Cardoso, do sem-número de perdas ocasionadas pela enchente de maio, uma das piores foi justamente a desse espaço, submerso assim como todo o restante do espaço escolar. A sede segue interditada e, até o momento, as aulas acontecem em um clube e nos salões de uma igreja do bairro Sarandi.

Com a sede ainda interditada, estudantes da EMEB Liberato, em Porto Alegre, têm aula nas dependências de uma igreja | Foto: Gabriela Sardi / Especial / CP

Desde já, porém, a professora reúne brinquedos, objetos decorativos e livros para reconstruir, assim que possível, o espaço afro-indígena Maria Olmira Machado. Para ela, isso é fundamental para valorizar e fortalecer os saberes quilombolas – que não devem ficar restritos ao feriado da Consciência Negra ou ao protocolo das obrigações curriculares, “mas se estender de forma transversal a todo o processo de ensino e aprendizagem”.

A alfabetização, por exemplo, para Daniele é afro-alfabetização. Aprendendo não só a grafia, mas a origem afro-indígena de palavras como “cochilar”, “abacaxi” e “caçula”, os alunos entendem, desde cedo, a centralidade das culturas não brancas na formação da identidade nacional. Além disso, acrescenta a professora, o combate ao racismo deve ser uma constante, no ambiente escolar ou fora dele. Para tanto, ações simples não são menos efetivas: na Liberato, por exemplo, a cantiga de roda “Escravos de Jó” já foi substituída por sua precursora, a “Guerreiros Nagô”, criada pelos africanos escravizados do Brasil colônia. “Vemos uma mudança de perspectiva [dos estudantes]. Se antes eles se referiam aos quilombos como ‘invasões’, por exemplo, agora já chamam pelo nome correto”, pontua Daniele.

Para Maria Eduarda Fontoura, de 15 anos, isso faz a diferença. A adolescente comemora que atividades ancestrais como a capoeira e a dança maculelê, praticadas no Quilombo dos Machado, sejam valorizadas na EMEB Liberato, na qual cursa o 8º ano do Fundamental. Com más lembranças das outras instituições pelas quais passou, Maria Eduarda diz que se sente acolhida na escola atual – assim como no quilombo, do qual é integrante recente. Foi nas amizades encontradas em ambos os locais que ela fortaleceu sua auto estima. “Eu não gostava de sair na rua porque eu tinha vergonha. Daí as pessoas [do quilombo] me chamaram na minha casa e falaram para mim começar a conversar e sair para brincar com elas, essas coisas.” Para a estudante, quilombo é uma junção “de pessoas negras que lutam por um lugar melhor”.

Maria Eduarda Fontoura, de 15 anos, estuda na EMEB Liberato e mora no Quilombo dos Machado, ambos na zona norte da capital | Foto: Gabriela Sardi / Especial / CP

No Ensino Superior

Este ano, além de estrear as cotas para quilombolas em seu vestibular, a Ufrgs anunciou a promoção do curso de Educação Escolar Quilombola, o primeiro do tipo realizado no Rio Grande do Sul. A iniciativa foi viabilizada pelo Parfor Equidade, ação do Ministério da Educação (MEC) que financia propostas formativas em licenciaturas específicas – como a Educação Escolar Quilombola ou a Bilíngue de Surdos, por exemplo.

Por ora, a Ufrgs prevê apenas uma edição do curso. A intenção é formar 30 alunos, quilombolas ou não, com uma ajuda de custo mensal de R$ 700. Segundo Alan Brito, que coordena a capacitação, a proposta pedagógica propõe uma divisão de carga horária entre as salas de aula e os territórios quilombolas do estado. “Uma licenciatura em Educação Escolar Quilombola é uma ferramenta muito poderosa de mobilização, porque as pessoas com essa formação poderão atuar inclusive nos órgãos institucionais e na promoção de políticas públicas”, destaca o docente. O curso está em processo de ajuste do projeto político pedagógico e deve ser lançado em breve.

Correio do Povo
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