Atenção voltada aos quilombolas

Atenção voltada aos quilombolas

Pesquisa da Emater/RS-Ascar traça radiografia das comunidades gaúchas remanescentes de quilombos, na maioria rurais, com intuito de subsidiar politicas públicas para o segmento

Por
Camila Pessôa

Uma pesquisa inédita no Rio Grande do Sul e promessas de volta de políticas públicas trazem novas esperanças para a superação de dificuldades e o atendimento de demandas das comunidades remanescentes de quilombos. Além de muitas vezes enfrentarem problemas de acesso à saúde, educação, saneamento básico e infraestrutura, essas populações têm pleitos antigos de titulação de terras, acesso a linhas de crédito, programas para amenizar impactos da seca e de combate efetivo às violências racial e religiosa, como elenca o conselheiro do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo (IACOREQ) Ubirajara Toledo. 

Segundo o conselheiro, esses problemas se intensificaram nos últimos anos, percepção que pode ser explicada pelos números no orçamento da União, disponíveis no Portal de Transparência. As despesas executadas para “Reconhecimento e indenização de territórios quilombolas” foram de R$ 27,26 milhões em 2020 para R$ 160 mil em 2021 e R$ 350,71 mil em 2022. Além disso, desde 2020 não há mais investimentos destinados às ações orçamentárias de fomento ao desenvolvimento local de comunidades remanescentes de quilombos e outras comunidades tradicionais; nem para ações e serviços de melhoria de saneamento básico em pequenas comunidades rurais ou remanescentes de quilombos.

Essa ausência de investimentos do poder público é sentida no quilombo Anastácia, em Viamão. A moradora Berenice Gomes de Deus relata que hoje apenas 7 famílias permanecem no local, o restante foi embora para ter acesso a escolas e infraestrutura básica. Mas uma nova sinalização do Estado pode mudar perspectivas. Justamente com a intenção de pensar em políticas públicas para estes povos, a pesquisa “Comunidades Remanescentes dos Quilombos Certificadas do RS: Diagnóstico social, econômico e produtivo” é a primeira em 17 anos com olhar específico para essas comunidades no Estado. Desenvolvida em parceria da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SEAPDR) com a Emater-RS/Ascar, a pesquisa foi executada por um grupo multidisciplinar de dez pesquisadores que foram a campo entre março e abril deste ano. 

 Todas as comunidades rurais desenvolvem produção agrícola

Além de ter sido feita há quase duas décadas, a última pesquisa a esse respeito levantou informações de apenas 70 comunidades, o que torna o estudo atual inédito por ter colhido dados de todas as 130 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) no Rio Grande do Sul, como explica a coordenadora da pesquisa, Denise Reif Kroeff. Segundo ela, o estudo foi feito dessa forma por uma necessidade de subsídios e de um conhecimento melhor da população para que fosse feito um diagnóstico do momento atual. 

Uma das peculiaridades da pesquisa, segundo Denise, é que a unidade de análise utilizada não são as famílias, mas sim as comunidades, uma vez que o senso do IBGE já fez pesquisas com as famílias. Um dos dados encontrados é que todas as comunidades rurais desenvolvem produção agrícola, enquanto nas urbanas esse percentual é de 20%. A maior parte da produção é de pequenos animais, em especial suínos e aves, principalmente para subsistência, mas também para comercialização, atividade desempenhada por 80% das comunidades. Também são produzidos alimentos processados, como pães, geleias e conservas. Outra questão observada é que em 58% das comunidades são mantidas sementes crioulas. Denise afirma que isso mostra a construção de um patrimônio genético para a comunidade, que deve ser preservado, assim como o patrimônio cultural, este recheado de tradições, como o cultivo baseado nas fases lunares, simpatias para o clima, lendas e superstições. 

Berenice de Deus comenta que, em razão das muitas dificuldades, hoje apenas sete famílias resistem no Quilombo Anastácia, em Viamão | Foto: Camila Pessôa / Especial / CP.

Resultados da pesquisa:

113 das 130 comunidades do Rio Grande do Sul são rurais, o que representa um percentual de 87%. O estado tem, ao todo, 24 mil pessoas em 7.685 famílias quilombolas, destas, 6.512 são rurais e 1.173 urbanas. Enquanto 65% das comunidades estão no local há 101 anos, 20% estão há mais de 201 anos. Menos da metade, 49%, das comunidades têm acesso à distribuição de água. Enquanto 32% das comunidades obtêm água por meio de poços, 25% se abastece com cacimba. O escoamento de água ocorre por fossa séptica em 41% das comunidades, por fossa rudimentar em 31% e por vala ou céu aberto em 22%. 87% das comunidades produzem hortaliças. A batata doce é produzida em 83% delas, em 83% há frutas, o milho aparece em 82%, o feijão em 80% e a mandioca em 77%. Em produção animal, 82% das comunidades produzem ovos, 81% produzem aves de corte e 79% têm criação de suínos. 

Quanto a alimentos processados, 80% das comunidades produzem pão, 68% fabricam geleia e 58%, conservas. 80% das comunidades comercializam parte de sua produção, por meio de venda a conhecidos e vizinhos (85%); atravessador (34%), feiras (24%); comércio/indústria (14%). Em 80% das comunidades há famílias que acessaram crédito para financiamento de atividades produtivas. O que foi mais recebido é o PRONAF, em seguida o FEAPER. Em 58% das comunidades quilombolas há sementes crioulas (especialmente de milho, feijão, abóbora), o que aponta para a preservação de um patrimônio genético único.

Fonte: Seapdr.

Comunidades devem ser ouvidas pelos governos

Evento marcado para os dias 13,14 e 15 de dezembro, em Brasília, terá delegação de quilombolas gaúchos, que vão apresentar suas reivindicações, entre as quais a titulação de terras e o acesso a linhas de financiamento.

A relevância dos resultados da pesquisa da Emater/RS-Ascar foi notada pelas comunidades. O conselheiro do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo (IACOREQ) Ubirajara Toledo diz que o estudo veio num momento oportuno. Segundo ele, o instituto está dialogando com o Estado para levar esses resultados ao 3º Simpósio Nacional e 2º Internacional dos Povos Indígenas, Negros/as, Quilombolas e Religiosos/as de Matriz Africana e Afro-indígenas organizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras entidades. O evento ocorrerá em Brasília, entre os dias 13 e 15 de dezembro, e vai receber caravana com líderes de comunidades quilombolas de todo o Rio Grande do Sul, com suas reivindicações. 

De acordo com Toledo, entre as pautas a serem levadas ao encontro estão as ameaças dos projetos de mega mineração, o respeito à liberdade religiosa, a titulação de terras quilombolas, o acesso a linhas de crédito, políticas de geração de renda para mulheres, medidas para combater impactos da seca e o combate efetivo à violência racial, pleitos que devem estar presentes em carta conjunta a ser entregue às entidades no evento, com reivindicações de todos os grupos participantes.

É também obrigação da atual equipe de transição do Governo Federal olhar para essas pautas, uma vez que, desde 2002, o Brasil é signatário da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Esta prevê que o governo desenvolva políticas para proteger direitos de povos que se distinguem de outros da coletividade por suas condições culturais e econômicas e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições. Em seu artigo sexto, o documento define, inclusive, que esses povos devem ser consultados quando estiverem sendo criadas políticas públicas que os afetam diretamente. 

"O Incra, por exemplo, que já teve 8 mil funcionários, hoje tem 2 mil, sendo que 600 podem se aposentar amanhã. Então tocar uma política robusta vai ser um grande desafio, orçamentário e pessoal". Robervone Nascimento, servidora do Incra.

“Por conta de ter assinado essa convenção, o governo tem que conversar com os quilombolas, ter a chancela deles para o que for feito”, explica a doutora em Agronomia e servidora do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) Robervone Nascimento, também integrante da equipe de transição para o Desenvolvimento Agrário do Governo Federal eleito.  “Tudo o que está acontecendo no grupo a gente repassa para os movimentos sociais, e eles falam ‘olha, isso daqui não me contempla’, ‘isso daqui não está bom’, ‘assim para mim não dá’, ‘é melhor você arrumar isso daqui direitinho’”, relata a agrônoma, cuja participação na equipe foi indicada pelos próprios movimentos negro e quilombola. “Pesquisando e participando do Grupo de Trabalho de transição, eu percebi a invisibilidade que o quilombola tem dentro das estruturas do Estado”, lamenta.

Assim, segundo ela, um dos principais desafios da equipe é pensar numa estrutura que olhe para esses povos, com possibilidade de criação de um novo ministério com secretaria específica voltada para os quilombolas. De acordo com Robervone, esse novo ministério pode ser comparável ao extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), mas “não nos moldes do passado, e sim nos moldes mais inclusivos, de combate ao racismo fundiário, racismo institucional, racismo estrutural”, detalha. 

Porém, para atender essas pautas, o Estado enfrenta a barreira da falta de recursos e de funcionários, de acordo com Robervone. “O Incra, por exemplo, que já teve 8 mil funcionários, hoje tem 2 mil, sendo que 600 podem se aposentar amanhã. Então tocar uma política robusta, como tem que ser, vai ser um grande desafio, orçamentário e pessoal”, finaliza.

Situação das comunidades quilombolas é desafio para a equipe de transição e deverá ser tratada com mais cuidado a partir da reativação, pelo novo governo, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). | Foto: Fernando Dias / Seapdr / Divulgação / CP.

Decadência nos quilombos reflete descaso

Comunidade Anastácia, de Viamão, sofre com dificuldades para plantio em solo cada vez mais arenoso e com a contaminação das águas do Rio Gravataí, que já serviu aos moradores para consumo e para a pesca.

Em 64,12 hectares, o Quilombo Anastácia, localizado no município de Viamão, tem produção de feijão e mandioca, para subsistência. Segundo a moradora Berenice de Deus há mais de 100 quilombolas originários do território. Entre as sete famílias que ainda residem no local, a maioria é de aposentados. Os mais jovens saíram para lutar pela própria sobrevivência. “Não tem emprego, não tem escola, não tem nada. Tem que sair para fora para trabalhar”, relata Berenice.

No quilombo são plantados tubérculos, entre a lua minguante e nova, e hortaliças, entre lua crescente e cheia. Também há simpatias para controlar o tempo: para que não chova, joga-se sabão sobre o telhado e, para evitar temporal, basta um banco de pernas para cima ou um machado cravado no solo. Para adubar o terreno se usa esterco, mas Francisco de Deus, marido de Berenice, diz que isso já não tem sido o suficiente, pois o solo é arenoso e está desgastado. Também têm uma dezena de cabeças de gado e galinhas. 

Decadência por não serem assistidos por políticas públicas

O rio Gravataí, que costumava dar sustento a eles com pesca e água potável, hoje está contaminado, segundo os moradores, por conta dos agroquímicos utilizados em produções de arroz próximas. Agora, para a água, dependem de um caminhão-pipa, que também tem dificuldades de chegar ao local, com estradas precárias. A área original foi modificada. Hoje parcialmente alagada pela construção de uma barragem, sofreu com a expansão da rizicultura no entorno. Berenice conta que, no século passado, com a fome e a pobreza, parte do território foi trocado “por malas de comida” e até hoje não foi recuperado. 

A moradora conhece cada pedaço do terreno, descrevendo as propriedades medicinais de várias plantas encontradas na mata, como o gervão-roxo e a erva de lagarto. No terreno também há uma antiga figueira dedicada aos escravizados mortos e, de acordo com os moradores, enterrados sob o solo próximo à árvore. Eles contam que suas almas por vezes vagam por ali, e são sentidas pelos quilombolas. Onde antes era a casa de Anastácia, filha da fundadora e mulher que dá nome ao quilombo, hoje há um espaço dedicado à memória dos que se foram, com retratos e relíquias.

Com uma história de luta, atualmente o quilombo passa por decadência, como relata o casal, por não serem assistidos por políticas públicas. De acordo com Francisco, uma sede do quilombo, para reuniões e festas, começou a ser construída pela prefeitura há quatro anos, mas não avançou e permanece abandonada. Mesmo assim, a comunidade ainda recebem festas. No dia da Consciência Negra houve música, dança e comidas para cerca de 100 pessoas.

Galpão que começou a ser construído pela prefeitura de Viamão há quatro anos ainda não foi concluído, segundo os moradores do Quilombo Anastácia, mas a estrutura serve para abrigar festas como a ocorrida no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra | Foto: Camila Pessôa / Especial / CP.

Raíz agrícola, mas sem terra para plantar

A Associação Quilombola Peixoto dos Botinhas, também em Viamão, teve início após uma rebelião entre escravizados e capitães em um navio negreiro que chegava à Lagoa dos Patos. Em meio à confusão, alguns negros conseguiram fugir em direção a Capão da Porteira, entre eles as mulheres Antônia, Pelônia, Maria da Conceição e Fortunata. O nome veio em 2004, quando foi fundada a associação dos quilombolas. Peixoto era o sobrenome de um estancieiro que se casou com Pelônia, já os Botinhas foram um grupo musical criado pelos netos de Fortunata, famosos por tocarem em festas africanas e usarem botas, vestimenta que não era comum entre os negros. 

Toda essa história só foi descoberta pelos moradores do local a partir de 2003, quando pesquisadores lhes contaram que a comunidade era remanescente de quilombo. Sem terras para plantar, os moradores do local dedicam-se em sua maioria ao setor de serviços e trabalho em lavouras das proximidades. Os aposentados Nilva Cantini e Antônio Gomes produzem hortaliças para subsistência em seu quintal e têm renda extra a partir do artesanato de Nilva. Com um terreno emprestado de um ex-morador, a comunidade espera construir uma horta comunitária, como iniciativa conjunta com o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), como explica a segunda tesoureira da associação, Zenilda Bueno. “Nós vivemos bem, mas a maioria dos quilombolas das redondezas passa por muitas dificuldades”, diz Gomes, com família originária do Quilombo Cantão das Lombas, também em Viamão.

Antônio Gomes planta hortaliças no próprio terreno para a subsistência da família, mas quilombo está na expectativa de horta comunitária em parceria com IFRS | Foto: Camila Pessôa / Especial / CP.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895