Meio Ambiente: o papel da biodiversidade na reconstrução do RS

Meio Ambiente: o papel da biodiversidade na reconstrução do RS

Tragédia climática do ano passado, marcada por enchentes e deslizamentos, fez desmatamento aumentar 70% entre 2023 e 2024 no RS

Especialistas abordam a importância do cuidado com a biodiversidade na reconstrução do RS

Por
Rodrigo Thiel

Um ano, um mês e alguns dias. A tragédia climática vivida no Rio Grande do Sul entre o final de abril e maio de 2024 ainda se faz presente pelas marcas presentes no dia a dia dos gaúchos. E o Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado em 5 de junho, alerta também para a retomada do RS após as enchentes, seja na necessidade de uma reconstrução resiliente, seja no cuidado com a biodiversidade neste processo.

O Relatório Anual de Desmatamento elaborado anualmente pela organização MapBiomas aponta que, em 2024, apesar da diminuição no desmatamento no Brasil, o evento climático no RS causou impactos significativos no bioma Mata Atlântica. Mesmo com a redução na área desmatada em nos demais biomas brasileiros, a Mata Atlântica foi a única que se manteve com índice de desmatamento estável, justamente por conta da tragédia, de acordo com a entidade.

No ano passado, o RS registrou um dos maiores aumentos proporcionais em área desmatada se comparado com 2023, com aumento de 70% no desmatamento. Apesar disso, não figura entre os estados com maior área desmatada. Em 2024, as cinco unidades da federação com maior desmatamento registrado pelo MapBiomas foram Maranhão, Pará, Tocantins, Piauí e Bahia, responsáveis por 65% de toda área desmatada no país.

“Estes eventos provocaram perda de vegetação nativa por conta de inundações, deslizamentos de terra ou ventanias. Em 2023, foram registrados somente três eventos (2,8 hectares) de desmatamento no estado associados a esse vetor, enquanto que em 2024, foram validados 627 alertas, totalizando 2.805,8 hectares de vegetação nativa perdida”, citou o relatório publicado no mês de maio pela entidade.

Já com relação ao bioma Pampa, o maior desmatamento foi detectado pela MapBiomas em Pinheiro Machado, com área de 47,20 hectares. Outro relatório que destaca a dimensão dos impactos da enchente no Rio Grande do Sul é o divulgado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Além disso, o documento aponta o papel da biodiversidade na reconstrução resiliente da infraestrutura do RS.

Para a agência, a enchente mostrou como o estado é suscetível à inundações, por conta do rápido escoamento das águas que promovem a elevação dos níveis. Além disso, a ANA cita que o RS é o único do país onde são verificadas elevações maiores que 5 metros em grandes rios em intervalos iguais ou menores que 24 horas. Para o órgão, a manutenção da biodiversidade, principalmente de áreas verdes, ajuda a diminuir o impacto de eventos climáticos.

“Parte da cheia que ocorreu na Região Metropolitana foi amortecida pelas várzeas do rio Jacuí. Ou seja, o armazenamento da água nas várzeas naturais foi um fator decisivo para que os níveis não fossem mais elevados. Em outros países, existe uma solução conhecida como ‘room for the river’, que, significa ‘lugar para o rio’. As várzeas do rio Jacuí são exatamente os locais onde o rio possui espaço para fluir. Esta solução no RS seria justamente não alterar os fluxos de água para estas várzeas”, explicou o relatório.

O documento também cita outras áreas naturais que desempenham funções similares, como as matas ciliares, banhados e áreas alagáveis. A agência aponta ainda recomendações para a reconstrução do RS após a tragédia, como a transformação das áreas ribeirinhas em parques de inundação, a incorporação de critérios climáticas no planejamento de obras e a implementação de infraestruturas híbridas “cinza + verde” para a prevenção e melhor enfrentamento de desastres.

Por isso, o Correio do Povo elencou três tópicos para que especialistas em diversas áreas que circundam o tema do meio ambiente discorram sobre o processo de retomada do RS, principalmente no equilíbrio entre reconstrução, modernidade e sustentabilidade.

Reconstrução da infraestrutura e meio ambiente

Para o jornalista e presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Heverton Lacerda, o processo de reconstrução da infraestrutura danificada pela tragédia não estão sendo previstas também para evitar eventos climáticos extremos no futuro. Ele aponta como a resiliência natural, ou seja, a reconstrução da biodiversidade, como um dos pontos mais importantes neste processo. “O problema é que não há um planejamento para a reconstrução do meio ambiente. E, pior, as agressões, em especial ao bioma Pampa, seguem crescendo com o avanço indiscriminado, com risco de contaminar nossos recursos hídricos”, afirmou.

Já o engenheiro civil, professor universitário e coordenador do curso de Engenharia Civil da PUCRS, Felipe Brasil Viegas, destaca que a reconstrução do RS ainda está em uma situação incipiente. “Pouco saímos da condição de emergência. O equacionamento exige, primeiro, a definição de um planejamento estratégico. Os projetos só podem aparecer depois de um estudo que diga onde em quais áreas não pode mais ter ocupação humana, mas parques. O que eu observo é que continuamos trabalhando com obras emergenciais, e isso me parece uma carência”, citou.

Por conta disso, Viegas acredita que as ações com foco no meio ambiente durante o processo de reconstrução do RS também estão em estágios embrionários. “Na Serra e nos vales, nos locais com encostas que deslizaram, ainda não conseguimos recuperar as estradas, o que dirá as contenções e o replantio de árvores. Uma política de reconstrução das condições do meio ambiente é urgente. O descuido com a própria natureza agravará potenciais ocorrências de novas catástrofes”, completou.

Equilíbrio e futuro da vida no RS

O ambientalista e presidente da Agapan aponta que, para pensar no futuro da vida no RS é preciso entender que as mudanças climáticas compreendem uma situação que envolvem todo o planeta. Por isso, ele cita que cada país, estado e município precisa fazer sua parte em relação aos impactos gerados pelas ações humanas. Lacerda reforça ainda a mudança de pensamento de gestores e da iniciativa privada para incluir uma visão ecológica em suas decisões, e não apenas no modelo Ambiental, Social e Governança (ESG, em inglês).

“A nossa parte no Rio Grande do Sul é diminuir a degradação ambiental para ampliar a resiliência natural dos nossos biomas. É importante criar um plano de redução do uso de agrotóxicos, privilegiando a conversão do sistema agrícola para o modelo agroecológico. De forma emergencial, tem que recompor todas as matas ciliares e de encosta de morros, as áreas de preservação permanente (APP), e despoluir nossos rios e demais corpos hídricos”, reforçou.

Para o engenheiro e professor da PUCRS, a ocupação humana das áreas exige um convívio harmônico com o meio ambiente. Para isso, voltou a ressaltar a importância da criação de planos estratégicos e, principalmente, da revisão de planos diretores. “Precisamos ter ações para infraestrutura, para a vida humana e para o meio ambiente que permitam a continuidade da ocupação e da atividade produtiva. É preciso estabelecer que alguns lugares atingidos sejam transformados em parques e áreas utilizáveis, mas talvez não para moradia. E isso passa por uma boa revisão do plano diretor. É preciso que se tenha um plano logístico adequado”, destacou.

Situação do meio ambiente pós-tragédia

O presidente da Agapan avalia que, como muitos locais foram atingidos de forma drástica, a biodiversidade ainda precisará de tempo para se recompor naturalmente. Para Lacerda, entre as ações para recuperar as condições do meio ambiente após a tragédia, é necessário um debate amplo sobre os planos diretores das cidades, garantindo segurança para todas as partes envolvidas, principalmente moradores, empreendedores e biodiversidade.

“O importante é ter uma perspectiva associada à convivência com a natureza, respeitando seus limites para uma relação harmoniosa e pacífica que propicie o bem-estar das comunidades, a partir daquilo que necessitam para viver, e a segurança que o respeito ao meio ambiente pode proporcionar. É uma situação que precisa ser debatida com a comunidade antes de serem tomadas decisões que dificilmente permitirão alguma reversão em tempo adequado depois de encaminhadas”, concluiu.

Já para o professor Viegas, a recuperação da biodiversidade precisa ser tratada de forma mais ampla, envolvendo todos os entes da federação. O engenheiro cita que, além de agir com rigor na preservação do meio ambiente, é preciso também pensar em investimentos de infraestrutura que propiciem o convívio harmônico e a recuperação da natureza.

“Um aspecto fundamental para nossos rios é o tratamento de esgotos, além do uso racional do reaproveitamento da água. Para isso, existe tecnologia. A dificuldade não está na engenharia, mas no investimento consistente para fazer. Poro Alegre, por exemplo, possui regramento para que os prédios tenham reservatórios de amortecimento, captando água da chuva e ajudando a atrasar a chega dessa água na rede pluvial em dia de precipitação intensa”, contou.

O docente também apontou a necessidade de reflorestamento de áreas de mata ciliar na margem de rios, principalmente na Serra, no bioma da Mata Atlântica. “É fundamental para preservar a encosta, para preservar a natureza e para que a fauna que ocupa esses espaços tenha o seu habitat. Agora, o foco é na convivência com o ambiente, na sustentabilidade no tratamento das ações”, finalizou.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895