Porteiras abertas para o leite A2A2

Porteiras abertas para o leite A2A2

Propriedades da Serra gaúcha começam a investir na seleção genética de matrizes com foco na produção da bebida sem lactose e de alto valor agregado, consumida principalmente por pessoas alérgicas e intolerantes à substância

Por
Nereida Vergara

Existem dois fatores com os quais o consumidor pode ter dificuldade para entender e diferenciar os problemas de saúde ocasionados pela ingestão de leite de vaca. Um é a alergia à proteína do leite, gerada pelo sistema imunológico do indivíduo. Trata-se da conhecida alergia à Proteína do Leite de Vaca (APLV), que acomete as crianças e pode ser superada com a supressão momentânea dos produtos lácteos. O outro é a reação do sistema gastrointestinal denominada “intolerância à lactose”. A condição é ocasionada pela deficiência ou ausência de uma enzima intestinal chamada lactase. A substância é responsável pela decomposição do açúcar do leite (lactose) e facilita a absorção da bebida pelo organismo.

Para atender a esses públicos, as indústrias adicionam a lactase aos lácteos e os comercializam como “zero lactose”. Os processos são onerosos e diferenciados e fazem com que os produtos finais cheguem aos consumidores com preços mais altos que os do leite comum

A seleção genética de animais, no entanto, está abrindo um promissor caminho para a produção desse leite mais digestivo, com maior valor agregado e produzido sem o acréscimo de nenhum ingrediente: o chamado leite A2A2. A denominação é utilizada desde 2019, quando foi autorizada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para figurar nas embalagens do leite com origem em vacas A2A2. "Trata-se de um processo complexo, que implica a comprovação da genotipagem dos animais A2A2, dos processos de rastreabilidade, da segregação do rebanho e da higienização das linhas de ordenha para evitar mistura com o leite A1", comenta a professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e líder do grupo de pesquisas em tecnologias de lácteos especiais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Neila Richards. 

O trabalho para a certificação de rebanhos, no Brasil, para a produção do leite A2, mais digestivo, portanto, e apto a um mix de produtos idêntico ao do leite comum, teve início em 2015. Já a partir de 2018, especialmente pelos laticínios Letti e Piracanjuba, ambos com parques industriais localizados no centro do país, foram lançados os primeiros leites fluidos e alguns derivados. 

O Anuário Leite 2023, da Embrapa, dá pistas de como esse mercado vem se estabelecendo na cadeia produtiva leiteira brasileira. De acordo com a publicação, em 2022, a matéria-prima representou 1% do consumo nacional, movimentando um mercado de R$ 100 milhões. “São, pelo menos, dez empresas com leite e queijos frescos pasteurizados e duas empresas líderes com leite longa vida A2”, informa a publicação. O documento também evidencia que o mercado global do leite A2 e de seus derivados foi avaliado em 8 bilhões de dólares no ano de 2022, segundo dados da empresa canadense Precedence Research. “Para 2030, as projeções sinalizam algo em torno de 25 bilhões de dólares”, aponta a publicação.

No Rio Grande do Sul, pelo menos, duas granjas estão com trabalho adiantado na seleção do rebanho A2A2, de acordo com a professora. Uma delas é a Granja Cichelero, localizada no município de Carlos Barbosa. A outra é a Fazenda Trevisan, com unidade produtiva em Farroupilha. "O processo é caro, pois, para obter a certificação, é preciso cruzar as vacas A2A2 utilizando touros com os mesmos alelos”, pontua Neila. 

A produção requer também investimentos na genotipagem das matrizes e descarte estratégico dos exemplares que não atendem aos requisitos necessários para a produção do leite de valor agregado. É preciso, ainda, reter as terneiras com esse perfil produtivo para que a propriedade mantenha, ao longo do tempo, a quantidade e a constância no fornecimento do leite para a indústria. “Se a granja não quer descartar drasticamente os animais, levará de 10 a 15 anos para completar o ciclo", observa Neila.

Contudo, apesar de o leite A2 apresentar vantagens nutricionais, como índices levemente maiores de gordura e proteína, há uma desvantagem no rendimento das fêmeas. "A produtividade dessas vacas é, em média, 12% menor", compara Neila. Mas a especialista ressalta que o leite A2A2 é destinado a um público atento aos produtos que promovem a saúde e, por isso, paga a mais por eles.

Laticínio Trevisan ruma para a certificação

Fazenda familiar de Farroupilha aposta em atributos como qualidade, segurança, bem-estar animal e sustentabilidade para conquistar o nicho de mercado que paga a mais pelo leite especial e valoriza a produção do Rio Grande do Sul

Fazenda Trevisan, de Farroupilha, tem 90% dos animais destinados à produção do leite A2A2. Segundo o gerente da propriedade, Átila Cado Soares, os 10% que ainda têm o alelo A1 serão vendidos. Esse será o último passo para a granja obter a certificação e e passar a rotular todos os seus produtos como A2A2 | Foto: fazenda trevisan / divulgação / cp

O laticínio Trevisan iniciou a seleção de animais A2A2 praticamente ao mesmo tempo que foi construído, em 2016. O começo das atividades teve como base as informações sobre a comercialização do leite dessas vacas em países da Europa, da América do Norte e da Oceania. O veterinário responsável e gerente da fazenda localizada em Farroupilha, Átila Cado Soares, conta que, já em 2017, a granja passou a utilizar exclusivamente touros A2A2 para a reprodução de fêmeas leiteiras. 

A partir de 2020, depois de reproduzir o rebanho com o método de inseminação artificial, o estabelecimento passou a fazer a transferência de embriões. Hoje, a fazenda tem 90% dos animais A2A2 e providencia a venda dos 10% que ainda têm o alelo A1. Esse é o último passo para a granja obter sua certificação e passar a rotular todos os seus produtos como de origem A2A2. 

A média produtiva é considerada alta, conforme Soares, chegando a 43,5 litros de leite diários. "A principal vantagem de criar somente esse tipo de vacas é a padronização em uma única matéria-prima, não havendo a necessidade de segregação de rebanho nem da separação do leite produzido”, analisa. Mas a principal vantagem, comenta, está mesmo no consumidor. “O mercado demanda um produto diferenciado, de alta qualidade, seguro, que promova o bem-estar animal e que seja ambientalmente sustentável para oferecer para seus clientes e consumidores, e produzido aqui, dentro do Rio Grande do Sul", avalia o veterinário. 

Os animais da fazenda são da raça holandesa, lembra Átila. "Todos os nossos produtos, leites e iogurtes, que são produzidos com Leite Tipo A, terão o plus de serem também feitos exclusivamente com o leite A2A2, e os benefícios já são conhecidos: além de produtos alta qualidade, seguros, de melhor sabor, mais saudáveis, também têm melhor digestibilidade, podendo ser consumidos por parte maior da população, sem gerar nenhum transtorno ou desconforto", completa o gerente.

Granja Cichelero faz transição sem pressa

"Não é um processo simples, e, além de tudo, é caro. Para antecipá-lo, teríamos de gastar R$ 1 milhão e vender todos os animais não selecionados que temos, o que também é uma operação complicada", comenta veterinário responsável pela reprodução animal da Granja Chichelero, de Carlos Barbosa, há 20 anos, Hugo Zardo Filho | Foto: arquivo pessoal / hugo zardo filho / cp.

Atenta ao mercado e ao desejo do consumidor por um leite mais leve e digestivo, mas sem pressa, a Granja Cichelero, de Carlos Barbosa, iniciou a seleção de vacas A2A2 há três anos. O veterinário responsável pela reprodução da granja há 20 anos, Hugo Zardo Filho, explica que o estabelecimento tem regras próprias para a seleção. "Nós fazemos o mapa genômico de todos os animais para identificar o potencial de produção e sanidade. E, entre os marcadores genéticos, usamos o que mostra se a vaca tem o alelo A2A2", esclarece Zardo.

Atualmente, a granja possui 380 vacas, das quais 80 já são A2A2, ou pouco mais de 70% do rebanho. No total, a Cichelero produz, hoje, 5,8 mil quilos de leite por dia (aproximadamente 5,7 mil litros), com índice de gordura de 4,2% e de proteína de 3,4%. Zardo diz que a granja tem a expectativa de ter o rebanho completo, selecionado para leite A2A2, em um prazo que vai de 10 anos a 15 anos. "Não é um processo simples, e, além de tudo, é caro. Para antecipar, teríamos de gastar R$ 1 milhão e vender todos os animais não selecionados que temos, o que também é uma operação complicada", comenta. O veterinário destaca ainda que, para obter a certificação, nenhuma das vacas pode ter alelo A1A1 ou A1A2. "Há regras que precisam ser obedecidas para que conste, na embalagem, a indicação de origem do leite", pontua.

As diretrizes da Cichelero se referem às várias etapas de certificação, que devem ser acompanhadas por institutos acreditados para a tarefa. As normas devem obedecer, além da genotipagem, separação do rebanho e higienização da ordenha, entre outras. Mesmo que o Mapa tenha permitido colocar a identificação de origem, desde 2019, nas embalagens deste tipo de leite, a resolução Nº 4.769, da Anvisa, proíbe a publicação das informações que indiquem ou sugiram que o alimento pode ser adequado para indivíduos com alergia à proteína do leite de vaca. O texto que pode constar nos produtos de circulação no mercado, conforme a resolução, é: "O leite produzido a partir de vacas com genótipo A2A2 não promove a formação de BCM7 (betacasomorfina-7), que pode causar desconforto digestivo".

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895