60 anos depois: As vidas que foram transformadas pelo golpe de 1964

60 anos depois: As vidas que foram transformadas pelo golpe de 1964

Pessoas que tiveram suas rotinas impactadas pela ditadura compartilham que o país ainda desconhece a sua própria história

Correio do Povo

Pessoas que vivem o golpe de 1964 em Porto Alegre, como Omar Ferri, relembram os seus desdobramentos

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Por Mauren Xavier e Rafael Renkovski

Após 60 anos, o golpe de 1964 e os seus desdobramentos, que perduraram por mais de duas décadas, seguem linhas opostas na trajetória de pessoas que vivenciaram aqueles momentos. Para alguns, a ruptura de vida foi drástica. Para outros, os contornos foram sendo esculpidos ao longo dos dias, meses e anos.

Após seis décadas, Jair Krischke viu sua vida mudar com o golpe. Passou a atuar fortemente na luta dos direitos humanos. “Fiz meu PhD”, como ele mesmo resume ao falar sobre o período. Com o auge da repressão, recorda como atuou para retirar pessoas do país e como temeu por sua própria situação. “Ficamos muito envolvidos nisso, de tirar pessoas do Brasil”, lembra, referindo-se a dirigentes políticos, deputados, senadores, dirigentes sindicais e estudantis. Após, o processo foi de resistência. Mas, neste contexto, faz alertas que valem para os dias atuais, como o fato de que “o brasileiro não conhece” a sua própria história. “O país mudou, a população é outra e é capaz de embarcar em uma nova aventura”, afirma, ao fazer uma ponte com os dias atuais.

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A falta de compreensão dos acontecimentos históricos também é uma preocupação carregada por Cláudio Accurso. Professor de economia da Ufrgs, ele foi um dos 41 expurgados da Universidade no segundo semestre de 1964, o que, segundo ele, ocorreu por apresentar aos alunos assuntos de outros países. A saída abrupta da sala de aula acabou ainda fazendo com que ele tivesse que deixar o Brasil, exilando-se em países da América Latina. “Foi uma peregrinação”, relembra.

A expulsão foi um golpe forte, mas que, de certa maneira, a memória desse momento acabou por ser levemente amenizada por um acontecimento que ocorreu poucos meses depois. Accurso havia sido escolhido o paraninfo da turma que se formaria no final daquele ano. A reitoria rejeitou o pedido dos alunos. Por unanimidade, a turma daquele final de 1964 decidiu não realizar a cerimônia oficial e celebrou o momento com o então professor expurgado. “Imagina a importância de um gesto desses. Ainda mais naquele momento”, recorda ele, hoje aos 94 anos.

Para o ex-governador Jair Soares, que se tornou ministro da Previdência no regime militar, a perspectiva é similar a de Krischke em relação à falta de conhecimento da história e ao processo de apagamento de dados históricos. Porém, aponta como o maior erro político do regime a extinção do pluripartidarismo. Ao mesmo tempo, recorda dos momentos que, mesmo integrando a Arena, partido que dava sustentação ao governo militar, sofreu alguns “percalços”, como ele mesmo define.

Um desses momentos esteve relacionado às nomeações de profissionais que eram questionados por terem relação com grupos partidários opostos. “Fiquei marcado no SNI (Serviço Nacional de Informações) e tive problemas seríssimos”, relembra, apesar de ter conseguido se manter em destaque na política local.

Mudança de rota. No oposto, Raul Pont, que então era um jovem de 18 anos, condiciona o golpe ao seu ingresso na vida política. Como estudante da Ufrgs e bancário, ele passou a se envolver cada vez mais com os movimentos e a resistência. “Eu fui presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) Livre, na Ufrgs, em 1968. Porque era o único que fazia eleição. Se fosse seguir a reitoria e a lei, até a eleição do DCE ia ser indireta”, recorda. Porém, também cobrou um preço alto.

“Na universidade, a minha militância teve consequências positivas e negativas. Me fez perder o emprego, depois de ser presidente do DCE e após o AI-5, eu tive que sair de Porto Alegre. Meu apartamento foi invadido pela polícia”, relata. O pior ainda viria, com a prisão em São Paulo e a permanência no cárcere, depois transferido para a ilha do presídio em Porto Alegre: “Fui preso sem processo nenhum. Depois de ficar preso 1 ano e meio, fizeram o julgamento.”

De uma vida com perspectivas em Brasília para um período de incertezas. Assim pode ser resumido o período do pós-golpe para o advogado aposentado Omar Ferri, hoje com 90 anos. À época do golpe, ele já tinha vinculações políticas fortes com o PTB, partido de Leonel Brizola. E menos de um mês depois, foi expurgado do trabalho como procurador em Brasília, onde vivia com a família. Com receio de voltar diretamente para Encantado, sua cidade natal, fez uma peregrinação por algumas cidades. Mas, de volta ao Rio Grande do Sul, passou a ajudar na defesa de políticos perseguidos, o que veio marcar a sua trajetória de vida na luta dos direitos humanos.


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