Governo enfrenta pior momento no combate ao coronavírus

Governo enfrenta pior momento no combate ao coronavírus

Desgaste político das medidas e alterações atinge o governador Eduardo Leite

Flavia Bemfica

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O governo estadual e o governador Eduardo Leite (PSDB) em particular enfrentam seu pior momento desde o início da pandemia do novo coronavírus no RS. A fúria de parte dos prefeitos das 116 cidades das regiões de Caxias do Sul, Santa Maria, Santo Ângelo e Uruguaiana, que passam a partir desta segunda-feira para a bandeira vermelha do modelo de Distanciamento Controlado, começa a trazer à tona uma série de questionamentos. Eles já eram discutidos tanto dentro do governo estadual como entre gestores municipais, mas se mantinham represados em função do aparente controle da doença. Agora, colocam em xeque a estratégia adotada no Estado.

Gestores, técnicos, cientistas e profissionais da saúde apontam três questões principais, que teriam levado o RS a situação atual, de retorno de restrições ampliadas, mais de 90 dias após a confirmação do primeiro caso, em um cenário diverso do que aconteceu na China, na Europa e até mesmo nos Estados Unidos. São elas: a ilusão de que, mesmo sem testagem e rastreamento em larga escala ou uma política dura de isolamento a doença passaria “do lado” do Estado; as idas e vindas do modelo de Distanciamento Controlado e parte de seus próprios critérios de definição de restrições; e o discurso do próprio governo, que endureceu e flexibilizou restrições e estimou diferentes datas de pico que até agora não se confirmaram.

“A Famurs apoia esta e apoiará todas as alterações estabelecidas pelo governo que tenham base em critérios científicos. Mas é fato que o modelo atual serve para monitorar, não para combater o avanço da doença. E, sim, a tendência é de que parte dos prefeitos se revolte e não queira obedecer. Porque, com certeza, toda a situação está queimando capital político não apenas do governador, mas de todos”, alerta o presidente da Famurs e prefeito de Palmeira das Missões, Eduardo Freire (PDT).

“O governador e os prefeitos estão em uma situação política muito delicada. Primeiro houve um isolamento mais forte, depois uma abertura um tanto precipitada decorrente da pressão econômica. Em países com políticas públicas mais eficientes é mais fácil manter as restrições. Infelizmente, este não é o nosso caso. Aliado a isso, a falta de uma coordenação nacional também   pesou. Quando ela existe, o discurso se fortalece a nível local”, completa o professor de Políticas Públicas e Ciência Política da Ufrgs, Sergio Simoni Júnior.

Critérios das bandeiras são questionados 

O modelo de Distanciamento Controlado, implantado em 11 de maio, já passou por três rodadas de atualização. Ele utiliza 11 critérios para aferir bandeiras mais ou menos restritivas em 20 diferentes regiões, sendo que nove deles tratam de hospitalizações e da estrutura de saúde disponível. Epidemiologistas e matemáticos dentro e fora do RS já alertaram para o risco que isto traz embutido: o foco em número de hospitalizações e de leitos, por si só, não inibe o início do processo, que é a velocidade de transmissão da doença. Soma-se a isso a habilitação constante de leitos, que ajudaria regiões a seguirem com bandeiras menos restritivas mesmo com os casos se reproduzindo em alta velocidade.

Do início da pandemia até o momento, conforme os dados do Executivo, foram habilitados 624 leitos de UTI no Estado. As mudanças anunciadas pelo governador na quinta-feira passada, a partir das quais quatro regiões do Estado acabaram migrando para a bandeira vermelha, buscam corrigir parcialmente este ponto, mas ainda indiretamente. O argumento do governo, contudo, é de que as notas altas na ponta final (hospitalizações e leitos) geram restrições que acabam por obrigar a diminuição do contágio.

Mas parcela dos prefeitos segue apontando que são necessários mais ajustes. E, para parte dos especialistas, as alterações feitas ainda são insuficientes.  “As mudanças são muito positivas. É evidente que há uma melhora no modelo. Mas é fato que ele parece controlar o fim do processo, controla leitos de UTI, deixando a prevenção em segundo plano”, avisa o professor do Departamento de Matemática Pura e Aplicada da Ufrgs, Álvaro Krüger Ramos. Segundo Ramos, no modelo atual a bandeira preta é impossível de aparecer em uma região enquanto o sistema de saúde do Estado como um todo não estiver sobrecarregado.

O professor garante ainda que uma mudança simples, a substituição do atual arredondamento com zero casas decimais para um modelo com duas casas decimais nas notas, aliado ao estabelecimento de quatro intervalos iguais, resultaria em uma apuração mais precisa do cenário. “Hoje, mesmo que a região tenha a nota mais alta possível em todos os nove outros quesitos, os quesitos estaduais, em função de o Estado estar com um sistema de saúde sem sobrecarga, vão puxar todo mundo para baixo, e o suficiente para tirar qualquer região da bandeira preta. Na prática, temos um modelo de três bandeiras no qual a bandeira preta faz uma figuração danosa. É como se só pisássemos no freio depois de avançar o sinal.”

Discurso ambíguo incomoda prefeitos 

O governo do Estado identificou antecipadamente a revolta de prefeitos que ameaçam até ingressar judicialmente para tentar reverter as restrições que entram em vigor em suas cidades a partir desta segunda-feira, mas precisou fazer uma opção. Conforme um integrante do Executivo, a velocidade da doença não deixou muita margem para negociações. Imediatamente após anunciar as mudanças no modelo do Distanciamento Controlado, na quinta-feira, o governador Eduardo Leite (PSDB) passou a ser cobrado, as vezes duramente, por parte dos gestores municipais e por entidades empresariais de forma quase que generalizada.

Leite pesou a possibilidade de não implementar a alteração que faz com que uma região que atinge a bandeira vermelha permaneça nela por pelo menos duas semanas. É unânime entre técnicos do governo, contudo, que a medida é necessária. Enquanto isso, os prefeitos solicitam detalhamentos dos indicadores, questionam como a Capital, Porto Alegre, permaneceu com a bandeira laranja e reclamam de que o governador emitiu sinais trocados.

Depois de implementar o Distanciamento Controlado, em 11 de maio, fez duas alterações que abrandaram as normas. Na primeira, a partir do dia 30, passou a contar apenas os casos positivos internados para definir as bandeiras. Na segunda, por meio de um decreto em 31 de maio, permitiu que cidades de regiões com bandeiras amarelas ou laranjas estabelecessem regras próprias dentro dos critérios de distanciamento, que podiam ser mais flexíveis, contanto que passassem pelo crivo do Executivo estadual.

Mas agora, com a reabertura das atividades a todo vapor, voltou a endurecer os parâmetros e a pedir que as pessoas fiquem em casa. Outro equívoco teriam sido as diferentes estimativas feitas pelo tucano a respeito de quando o RS chegaria ao pico da doença. Primeiro, o governo estimou a possibilidade de pico para o final de abril, depois para maio, na sequência para o final de junho. Na semana passada, Leite disse que o Estado deverá conviver com a doença durante todo o inverno e possivelmente parte da primavera. “Foi equivocado estabelecer datas não realistas, gera muita expectativa. Teria sido mais correto e causado menos desgaste deixar muito claro, mesmo, que o Estado iria ficar ‘abrindo e fechando’ ou colocar projeções temporais mais longas desde o início”, resume o professor de Políticas Públicas e Ciência Política da Ufrgs, Sergio Simoni Júnior.

Mesmo com pouca testagem, RS entrou no clima de "já passou"

O RS começou a adotar medidas restritivas em função da pandemia do coronavírus na metade de março. Inicialmente, o pânico gerado pela chegada da doença (o primeiro caso foi confirmado no Estado em 10 de março) fez com que tanto o Executivo estadual como os municipais adotassem medidas rigorosas de distanciamento social. Mas agora, em retrospecto, os monitoramentos que acompanham o avanço da doença apontam que foi entre a metade de março e a metade de abril que a população seguiu mais fielmente as restrições. A partir de então, os cuidados foram sendo afrouxados, seja no discurso das autoridades, seja nos hábitos diários, seja na gradual reabertura de diferentes setores.

Ao contrário do que aconteceu em praticamente todos os países desenvolvidos da Ásia e da Europa para promover a reabertura, o RS ignorou uma etapa anterior, a realização de testagem ampla da população. E, ao testar, usa majoritariamente testes rápidos, que não identificam os casos ativos e, portanto, as pessoas com capacidade de infectar outras ou com risco de ter um quadro agravado; e que mostram um cenário atrasado de infectados. Além disso, mesmo com a disponibilidade de testes rápidos distribuídos pelo Ministério da Saúde, parte das prefeituras teria continuado a represar sua aplicação, com receio do escurecimento de sua bandeira, e, por consequência, do aumento das restrições.

Em 30 de maio, a pedido de prefeitos, o Estado promoveu também uma alteração envolvendo os testes moleculares (RT-PCR), que identificam quem está com a doença ativa. Passou a contabilizar apenas casos positivos internados para a definição da cor das bandeiras, deixando de fora os resultados positivos dos testes moleculares. Muitos acreditavam que, sem um número considerável de casos positivos, seria possível ‘burlar’ a identificação do tamanho da pandemia no modelo. Técnicos do governo garantem que, se esta margem existia, foi sanada com as mudanças promovidas na semana passada. E que isto explica, entre outros pontos, como cidades com baixo número de positivos também chegaram na bandeira vermelha.

“Não foi por falta de aviso. Na nossa cidade, fizemos uma parceria com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e estamos testando entre 10 e 20 pessoas por dia, com o RT-PCR. Temos 80 casos confirmados. Mas há vizinhos com população maior e com muito menos casos. Evidente que todos têm dúvidas sobre estas discrepâncias”, resume o presidente da Famurs e prefeito de Palmeira das Missões, Eduardo Freire. Mesmo sem a unanimidade dos prefeitos, a Famurs, como entidade, segue insistindo na adoção de uma política estadual, que envolva parcerias com universidades particulares e entidades empresariais, para que se amplie a testagem tanto para conter a doença como para ter certeza sobre a retomada.

O entendimento é de que, na prática, a baixa testagem resultou na identificação de um número de infectados que tende a ser subdimensionado, o que confunde a população sobre a gravidade do cenário e levou parte dela a um clima de “já passou” que agora deverá demandar esforços extras para ser revertido. Tome-se como exemplo a cidade de Santa Maria. Em 17 de abril, após editar um decreto com flexibilizações que incluíram a reabertura de academias, o prefeito, Jorge Pozzobom (PSDB) comemorava a existência de apenas 18 casos, nenhum grave. Ao Correio do Povo, questionado sobre se acreditava que o RS poderia se transformar em uma exceção no Brasil e não registrar um pico da doença, respondeu: “Faz 30 dias que fechei tudo. No nosso planejamento, estamos na terceira fase, de retomada da saúde econômica. Difícil dizer se teremos um pico ou não, mas tenho muita fé que dê tudo certo.” A região de Santa Maria está entre as quatro com bandeira vermelha a partir de hoje.


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