STF decide hoje sobre validade do marco temporal

STF decide hoje sobre validade do marco temporal

Ação em análise na corte envolve área reivindicada por indígenas em Santa Catarina e terá impacto em casos semelhantes sobre demarcação de terras pendentes no país

Patrícia Feiten

publicidade

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (7) um julgamento em que firmará sua posição sobre a aplicação do marco temporal na demarcação de terras indígenas. Por esse critério, os indígenas terão direito apenas a terras que já ocupavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O processo em análise na corte envolve uma área reivindicada por indígenas em Santa Catarina, mas tem status de “repercussão geral”, o que significa que a decisão será uma baliza para todos os casos semelhantes no país. Na semana passada, um projeto de lei que estabelece o marco temporal foi aprovado na Câmara dos Deputados. O texto, que tem o apoio do setor ruralista, segue agora para análise do Senado.

A tese jurídica do marco temporal surgiu em 2009, quando o critério foi usado em parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na época, o STF adotou o critério e decidiu em favor dos indígenas, por entender que eles estavam na área disputada com os agricultores – cerca de 1,7 milhão de hectares – na data da Constituição. Agora, o processo que desafia os magistrados envolve a reserva Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. Parte da área, com cerca de 80 mil metros quadrados, é ocupada pelo povo Xokleng. O governo catarinense pede a reintegração da posse, sob o argumento de que a terra não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Já os Xokleng afirmam que não a ocupavam na época porque haviam sido expulsos do local.

Para o coordenador da Comissão de Assuntos Jurídicos da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Nestor Hein, o projeto em tramitação no Congresso Nacional apenas busca transformar em lei o posicionamento anterior do STF. “Hoje, a jurisprudência do STF tem marco temporal. O projeto deseja reforçar essa ideia de que é necessário continuar a ter o marco, não traz nenhuma novidade”, diz. A ausência do princípio, entende Hein, traz insegurança jurídica aos proprietários rurais. “Poderá se pleitear a área indígena em qualquer área do país, ocupada ou não. A qualquer momento a pessoa poderá ser desapossada das suas áreas, bastará haver a invocação, através de laudo antropológico, de que ali era uma área indígena”, avalia.

O assessor jurídico cita o impasse em torno da chamada Terra Indígena Rio dos Índios, situada no município de Vicente Dutra, no norte do Estado. No final de abril, por meio de decreto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a demarcação da área de 711 hectares, destinada à posse do grupo indígena Kaingang. Além de agricultores, a área é ocupada por empreendedores e residentes, já que abrange parte da zona urbana. “(Eles) não vão ter para onde ir, porque não recebem pela terra, vão receber R$ 20 mil, R$ 30 mil pelas benfeitorias (realizadas no local) e vão embora com a malinha nas costas”, afirma Hein.

A demarcação de terras indígenas é um direito assegurado pela Constituição. Para o Ministério Público Federal (MPF), que em 29 de maio divulgou nota pública sobre o texto aprovado na Câmara, o projeto é inconstitucional. No entendimento do órgão, o estatuto jurídico das terras indígenas (disciplinado pelo artigo 231 da carta) não pode ser alterado por lei ordinária. Além disso, diz a nota, “os direitos dos povos indígenas, em especial o direito ao seu território tradicional, constituem cláusula pétrea, integrando o bloco dos direitos e garantias fundamentais, não podendo ser objeto sequer de emenda constitucional”.

O advogado Ricardo Alfonsin, especialista em direito agrário, reconhece que o tema é controverso – uma derrubada do marco temporal pelo STF abriria margem para a contestação da proposta, mesmo se ratificada no Senado. Alfonsin, porém, defende o princípio para evitar que os produtores rurais percam o direito a terras que já cultivam há gerações ou até mais de um século. “Nós já temos mais de 13% do território nacional demarcado, é quase o dobro da lavoura do Brasil. E a população indígena do Brasil não chega a um milhão de pessoas, então é uma coisa muito fora da realidade”, diz.

O etnoarqueólogo e pesquisador José Otávio Catafesto de Souza, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), vê o marco temporal como uma tentativa de barrar os avanços conquistados pelos povos indígenas ao longo das últimas décadas. “Vai atingir praticamente todas as comunidades do ponto de vista formal. Mas, do ponto de vista efetivo, não vai refrear o ímpeto que as comunidades indígenas têm naquilo que chamam de retomada, que são não apenas retomadas territoriais, mas das condições necessárias para que recuperem uma condição mais ou menos adequada de existência”, afirma.

Segundo o pesquisador, as demarcações no Brasil foram implementadas inicialmente com base em uma visão que reconhecia os indígenas não como cidadãos plenos, mas como incapazes que deveriam ser tutelados por um órgão estatal. Essa perspectiva, diz, foi respaldada pelo Código Civil Brasileiro, de 1916. “As terras indígenas foram originalmente pensadas como áreas de confinamento. Eles eram isolados da sociedade nacional, só restituíram o direito de ir e vir a partir da Constituição. Então, ela é um grande marco na história jurídica brasileira. A partir de então, o Estado brasileiro tem de adequar suas políticas às especificidades de cada comunidade, e isso tem um grande impacto”, diz Catafesto.

As terras indígenas

Atualmente, os registros da Funai apontam 761 terras indígenas no Brasil. Essas áreas representam 118,2 milhões de hectares, o equivalente a 13,75% do território brasileiro, e estão localizadas em todos os biomas, principalmente na Amazônia Legal.

Do total, apenas 475 já foram regularizadas. O restante ainda está em estudo ou em outros estágios do processo de demarcação.

Além disso, há cerca de 480 reivindicações de povos indígenas em análise na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Fonte: Funai

Os casos

Hoje, há mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas abertos no país, de acordo com a Agência Brasil.

O que diz a Constituição

Artigo 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895