Há séries que contam histórias. E há outras que reabrem feridas, belas, luminosas, necessárias. “Primavera nos Dentes”, que estreia dia 31 no streaming do streaming, pertence à segunda categoria. Em quatro episódios, o documentário desmonta e remonta o mito do Secos & Molhados, aquele grupo que surgiu no meio da ditadura, maquiado, performático e feroz, para dizer que a arte ainda podia respirar quando o país sufocava.
A série é menos um registro e mais uma ressuscitação. Porque falar do Secos & Molhados é invocar um trovão. Três jovens que, no início dos anos 1970, decidiram desafiar o silêncio imposto pelos fardados e pela moral. A repressão era cotidiana, os porões do regime gemiam, e eles ousaram aparecer de rosto pintado, dançando como quem declara guerra à caretice. O público delirou, a censura espumou, e o Brasil nunca mais foi o mesmo.
O mérito da série está em recuperar esse gesto inaugural: o da insubordinação estética como forma de resistência política. O diretor não tenta apenas explicar o sucesso da banda; ele o transforma em sintoma. A direção e o roteiro são de Miguel de Almeida. Ele também é autor do livro que inspirou a produção documenta.
As imagens de arquivo, as entrevistas e as recriações em estúdio constroem um retrato onde o corpo de Ney Matogrosso, o olhar de Gerson Conrad, a presença de João Ricardo o som que os cercava se tornam um manifesto contra o medo. É um retrato vibrante do momento em que o palco virou trincheira e o microfone, arma.
Nos depoimentos, Ney reaparece com sua lucidez de fera. Fala da coragem como se fosse uma necessidade fisiológica: “Eu entendi que não podia ter medo”. E é impossível não enxergar, nesse gesto, o eco de um país que ainda insiste em apagar o diferente. Gerson Conrad, por sua vez, surge mais introspectivo, dono de uma poesia que sempre foi o coração oculto do grupo. Ele lembra como as letras nasciam da leitura, da inquietação e do desconforto. “Cantávamos o que o corpo precisava dizer”, conta. Entre os que aparecem para compartilhar suas visões e experiências estão Paulo Mendonça, Moracy do Val, Cláudio Tovar, Roberto Frejat, João Marcello Bôscoli, Charles Gavin, Ana Cañas, Duda Brack e Helena Ignez, entre outros nomes essenciais para a reconstrução dessa história.
Há, porém, um silêncio que atravessa a série, o de João Ricardo, terceiro integrante, que preferiu não participar e não liberou o uso das músicas originais. É uma ausência que dói, mas que, paradoxalmente, reforça o tom de resistência do projeto. Sem os direitos autorais, a equipe decidiu criar novas canções, compostas por dois músicos históricos que acompanharam a banda nos anos 1970: o pianista Emilio Carrera e o baixista Willy Verdaguer. O resultado é uma trilha sonora que não imita o passado mas o reinterpreta. É Secos & Molhados reencarnado em outra pele, com o mesmo veneno e a mesma doçura.
Essas novas faixas servem de costura entre o ontem e o agora. O auge é a música inédita “Ouvindo o Silêncio”, composta por Gerson Conrad e Paulo Mendonça, e interpretada por Ney e Gerson, reencontro raro e simbólico, quase uma cerimônia. É como se o tempo inteiro da banda coubesse dentro dessa canção: a poesia, a ruptura, a saudade e o gesto de recomeço.
Assistir “Primavera nos Dentes” é como revisitar um tempo em que ser artista era perigoso e, justamente por isso, urgente. É lembrar que, enquanto o país era policiado, três figuras com rostos pintados mostravam que liberdade não se pede, se canta. E o documentário faz isso sem romantismo, mas com intensidade. Mostra o brilho, o cansaço, o colapso e o legado. Mostra a beleza de quem gritou quando todos cochichavam.
Mais que nostalgia, o que a série oferece é um espelho. O Brasil de agora, com suas novas formas de censura e violência simbólica, ainda precisa do grito de Secos & Molhados. Precisa lembrar que a arte é, antes de tudo, um ato de desobediência.
No fim, “Primavera nos Dentes” nos devolve o que o esquecimento tentou roubar. Trata-se aqui do som de uma geração que pintou o rosto para não se calar. Uma primavera que mordeu o frio e sobreviveu.