A hora e a vez da agricultura regenerativa

A hora e a vez da agricultura regenerativa

Em tempos de Conferência Climática, investir em ferramentas que conservem o solo agricultável pode ser a única saída para conter o avanço de uma degradação que, segundo a ONU, já atinge 40% do planeta

Por
Camila Pessôa

Um conceito de mais de 40 anos voltou a ganhar força no mundo com a necessidade de produção em escala em áreas agricultáveis que não têm mais para onde crescer em tamanho. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), que divulgou em 2022 o relatório Global Land Outlook, 40% do solo do planeta está degradado, em todos os continentes. O percentual, segundo a ONU, afeta metade da humanidade e ameaça cerca 50% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo. A organização aponta também que se nada for feito, até 2050 a área adicional de solos deteriorados no mundo poderá ter tamanho equivalente ao da América do Sul. 

Historicamente, o movimento pela sustentabilidade na agricultura obteve um novo marco a partir dos anos 1980. As preocupações com alimentação saudável, manutenção da biodiversidade e preservação de recursos naturais cresciam, no contexto em que o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) publicou seu primeiro estudo com recomendações para os cultivos orgânicos. O conceito não era novidade para o editor Robert Rodale, que teve uma vida dedicada ao trabalho com agricultura sustentável, em sucessão ao pai, Jerome Irving Rodale. Mesmo defendendo os orgânicos, R. Rodale buscava chegar a algo mais abrangente. Ele queria conversar com todos os produtores sobre as oportunidades e possibilidades de um cultivo preocupado com o desenvolvimento social e ambiental, sem soar como um extremista ou impor mudanças radicais. Sua solução foi um conceito que implicasse em uma mudança gradual, benéfica para todos: a agricultura regenerativa. 

A ideia rendeu a criação da Regenerative Agriculture Association, mas sua popularidade foi breve. Em 1987 e 1988 a editora Rodale, Inc. publicou livros sobre o assunto, mas o deixou de lado logo em seguida. Do fim da década de 1980 em diante, o termo apareceu apenas esporadicamente nas publicações da editora, e continuou assim até 2014, quando surgiu a publicação Regenerative Organic Agriculture and Climate Change ( Agricultura Regenerativa Orgânica e as Mudanças climáticas). A pesquisa ligou a ideia de Rodale ao sequestro de gás carbônico da atmosfera. Desta forma, mostrou-se que práticas simples, dentre elas o plantio direto, a cobertura dos solos e a utilização de bioinsumos, podiam ajudar a salvar o mundo das mudanças climáticas. 

Agricultura Regenerativa no Brasil

Não é à toa que tais práticas voltaram a se popularizar, em especial no Brasil, como afirma o engenheiro agrônomo e mestrando em Agricultura de Precisão na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Vinícius Dias. Ele diz que as recomendações ressurgiram no país por volta do ano de 2016, com o investimento de empresas no assunto, e que essa volta tem a ver com a popularização das propostas de sustentabilidade. “Todo o mundo grita por sustentabilidade”, explica e complementa que, com o objetivo de agredir menos os solos e produzir em maior quantidade e qualidade, a agricultura regenerativa tem tudo a ver com as necessidades de hoje. 

O doutor em Ciência do Solo e professor também da UFSM Telmo Amado explica que esse contexto tem ligação com a demanda crescente da produção de alimentos e com o avanço da contaminação dos recursos naturais disponíveis. Nesse sentido, diz ele, o diferencial da agricultura regenerativa, é que ela não compromete a matriz do solo. “Você tem de um lado uma demanda crescente de alimentos e de outro lado grande parte das áreas agrícolas com perda de qualidade”, enfatiza Amado.

De acordo com o professor, a aplicação dos ditames da agricultura orgânica já não é suficiente para conter a degradação crescente. “A agricultura orgânica, ou aquela puramente agroecológica, solucionam o problema dos agroquímicos, mas têm dificuldade de produzir grande volume no espaço de tempo necessário”, admite o professor. Por outro lado, a agricultura regenerativa pode resultar até em um aumento de produção se comparada à agricultura nos moldes tradicionais. A pesquisa de Vinicius Dias traz esta demonstração. O agrônomo acompanha há três anos o cultivo de soja da produtora Silvia Bittencourt (veja mais na página 3), em Rosário do Sul, e constatou que, com quase o mesmo custo, adotando a agricultura regenerativa, foi possível produzir seis sacos de soja a mais por hectare que a média da região.

Os pilares desse tipo de agricultura

A agricultura regenerativa valoriza a qualidade do solo como um de seus principais pilares, com o objetivo de manter a cobertura do solo, sequestrar carbono, recuperar o estoque de matéria orgânica e nitrogênio, estimular a ciclagem, infiltração e armazenagem, promover sistemas integrados lavoura/pecuária/floresta e reduzir o uso de agroquímicos. Para isso, algumas das medidas mais eficazes são a cobertura dos solos (com plantas específicas), o plantio direto (semeadura sobre a palhada), a busca por alternativas de controle físico de plantas daninhas e a utilização de bioinsumos. “Tem crescido muito o uso de bioinsumos, bactérias, fungos e organismos que os agricultores compram e multiplicam na sua propriedade, eles montam uma estrutura”, diz Amado.

Conforme o professor, inclusive os empresários estão investindo nessas práticas. “Eu vejo isso como uma coisa muito positiva, porque eles não só aderiram ao conceito, como eles estão investindo nos bioinsumos, e assim reduzindo o uso de agroquímicos”, opina. 

Interesse do produtor pode levar Brasil à vanguarda

Segundo o professor da UFSM Telmo Amado, Brasil caminha para ser o país que mais usa bioinsumos no plantio agrícola | Foto: Silvia Bittencourt / Arquivo pessoal / CP.

Mais aberto às práticas conservacionistas, agricultor brasileiro, não apenas do segmento agroecológico, aposta nos princípios que regem o manejo regenerativo dos solos, com a utilização de bioinsumos, rotação de culturas e diversidade.

O agrônomo e mestrando em Agricultura de Precisão na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Vinícius Dias destaca que pesquisas apontam que a agricultura regenerativa reduz, em média, em 25% a 75% o uso de agroquímicos no plantio. “Tem estudos que mostram que os insumos biológicos são até melhores que os insumos químicos, porque muitas pragas já têm resistência a esses insumos”, explica. De acordo Dias, o processo de transição para uma agricultura regenerativa leva de quatro a cinco anos. “A transição depende de cada produtor, o que pode ser feito no início é usar os bioinsumos para controles de pragas e doenças”, ressalta. 

Com essas vantagens, o professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutor em Ciências do Solo, Telmo Amado revela que cada vez mais agricultores gaúchos entram no processo de caminhada para uma agricultura regenerativa. “Tivemos a forte incursão do sistema de plantio direto, com uma grande expansão e diminuição do revolvimento do solo”, enfatiza. Porém, Amado admite que ainda é preciso desconstruir alguns pilares, entre eles os monocultivos e a simplificação dos sistemas produtivos com dependência de agroquímicos. Ele acrescenta que é difícil mudar a matriz da economia, que é a soja, mas lembra que agora estão surgindo oportunidades de melhora na qualidade da entressafra, para aumentar a diversidade nas lavouras. 

Hoje, garante o professor, os produtores têm feito cada vez mais a rotação com pelo menos duas culturas. Ele salienta, contudo, que há possibilidades de maior diversidade, com de três a sete cultivos diferentes que favoreçam a ciclagem de nutrientes. Esse entusiasmo não só dos gaúchos como dos brasileiros em geral podem colocar o país na vanguarda da conservação de solos. “O Brasil está evoluindo para ser um dos países que mais utiliza insumos biológicos”, afirma. 

Para Amado, isso vai trazer uma série de benefícios, como a inclusão de boas práticas de manejo. “Os agricultores americanos ainda não despertaram para isso como os brasileiros, o que nos pode dar um grande diferencial nos próximos anos”, acrescenta.

Saúde em jogo

Um dos principais fatores para o aumento do interesse em agroecologia no Rio Grande do Sul é a preocupação crescente com a saúde dos trabalhadores do campo, em especial dos jovens, como afirma a agrônoma e uma das fundadoras da Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) Cláudia Bós Wolff. Para ela, as práticas favorecem, inclusive, a permanência dos jovens no meio rural, preocupados com prejuízos à sua saúde devido ao uso de agrotóxicos. "A agroecologia mantém jovens no campo", afirma a agrônoma. Além disso, ela cita como outro motivo para o interesse crescente o aumento da demanda do mercado por produtos orgânicos.

Ao contrário do professor Telmo Amado, Cláudia acredita que a produção orgânica em larga escala com rentabilidade é viável. Segundo ela, entre as vantagens de um bom cuidado com o solo estão o menor custo com insumos externos, menos perdas com erosão e menos problemas com pragas e doenças, mas a maior dificuldade encontrada para a produção orgânica ainda é a mão de obra. Mesmo assim, ela diz que com os equipamentos necessários é possível vencer esse desafio, se houver uma mudança de pensamento por parte dos produtores e da sociedade. "É um paradigma diferente, não se pode pensar em monocultura nesse sistema", finaliza. 

Terra mais saudável com menor uso de agroquímicos

Com ajuda da rotação de culturas e adubação, agricultor de Panambi investe na terra saudável e permeável para o desenvolvimentodas raízes das plantas | Foto: Thiago Strobel / Arquivo Pessoal / CP.

Em Panambi, na região das Missões, Rio Grande do Sul, produtor tem fábrica própria de bioinsumos há seis anos e multiplica as bactérias para manter o solo de sua propriedade nutrido, diminuindo a necessidade de fertilizantes

O agricultor Daniel Strobel, de Panambi, na região das Missões, planta soja, milho e trigo em uma área de cerca de mil hectares. Há mais de 20 anos ele aplica as técnicas de preservação de solos, visando a sua ativação biológica. “Sempre tivemos caráter inovador, fomos pioneiros em sistemas de plantio direto (semeadura sobre palhada)”, relata. Strobel tem como foco deixar a terra saudável e penetrável para as raízes das plantas com a ajuda da rotação de culturas e a adubação. Foi desta maneira que, ano a ano, conseguiu que a necessidade de agroquímicos utilizada no plantio fosse diminuindo.

Há seis anos, o agricultor instalou na propriedade uma fábrica de bioinsumos, a qual contribui com o processo. Nela, biorreatores são utilizados para multiplicar bactérias, num processo dinâmico que usa mais de 15 microorganismos diferentes. Strobel relata que com a aplicação dos bioinsumos que produz, aliada a outras práticas, conseguiu reduzir o uso de fertilizantes químicos em 50% nos últimos três anos e, o de agrotóxicos, em 80% nos últimos cinco anos. Assim, em um ano, o produtor já recuperou seu investimento com a instalação da fábrica. Ele admite, porém, que ainda é difícil reduzir o uso de fungicidas, uma vez que o uso de bactérias para combater, por exemplo, a ferrugem asiática (uma das pragas mais devastadoras na lavoura de soja) ainda não é eficiente. 

“A gente procura, através do cultivo de várias plantas, fazer uma biodiversidade do solo, além disso estamos trazendo da mata os fungos e as bactérias que colocamos para dentro da lavoura”, comenta. Outra conquista obtida por Strobel com a agricultura regenerativa foi a estabilidade na produção, resultado de uma maior resiliência das plantas. “Temos uma resiliência grande porque se tem um solo equilibrado, que oferece muitos elementos químicos”, explica. 

Comunidades de micróbios e adubação orgânica

Pequenas fábricas de bioinsumos adotadas pelas propriedades usam equipamentos para multiplicação de microorganismo necessários para nutrir o solo e melhorar as condições de produtividade, com baixo custo. | Foto: Thiago Strobel / Arquivo Pessoal / CP.

A doutora em biologia molecular e produtora rural gaúcha Silvia Bittencourt cultiva soja em integração com a pecuária em 700 hectares de uma propriedade que divide com a mãe e os irmãos em Rosário do Sul, na Fronteira Oeste do Estado. Depois de morar no Distrito Federal e em Goiás, onde era sócia de uma fábrica de alimentos naturais, Silvia retornou ao Rio Grande do Sul em 2018, um pouco antes do falecimento do pai. Para retomar a vida profissional, aceitou o convite de um de seus irmãos para trabalhar na propriedade da família, justamente com a produção de bioinsumos. Determinada, a bióloga fez estudos e percebeu na agricultura com uso de bioinsumos uma ferramenta importante para a mitigação de problemas da propriedade, a analogia seria o uso de bioinsumos “como se usa um probiótico para quem não tem intestino saudável”, explica.

Silvia deu início ao trabalho em 2018, apenas acompanhando a produção, pois não tinha intenção de plantar, e sem nenhum conhecimento prévio na área de produção da soja. Em experiência anterior, no ramo de alimentos, trabalhava da maneira mais natural possível. “Quando vim para cá fechamos a empresa e queria me manter em atividades que promovessem a saúde, e foi esse o grande desafio”, relata.

O tratamento de “saúde do solo” foi feito basicamente com comunidades microbianas, redução de defensivos químicos e uso de adubos orgânicos. Segundo a produtora, um dos resultados mais significativos é a redução de custos de produção em cerca de 30%, a partir de um investimento de tempo, trabalho e dinheiro que ela considera baixo, para a instalação de uma biofábrica, de construção rápida e entrega pronta por empresas especializadas. Entre os modelos de biofábrica disponíveis, ela optou por um simples, de implantação
rápida e pronta entrega, feita por empresas especializadas.

“A grande mudança é você estar num ambiente mais saudável, para mim esse é um dos pontos de fundamental importância”, diz ela. Hoje, o principal agroquímico que a propriedade utiliza é o herbicida, sendo o glifosato o mais utilizado. Outros defensivos químicos para controle de doenças e pragas foram substituídos por bioinsumos. Defensivos químicos são uma ferramenta para algum descontrole, caso ocorra. Mas Silvia pretende melhorar o manejo buscando a rotação de cultura, solo sempre coberto, produção sistêmica, uso de bioinsumos ao longo de todo o ano e redução dos custos onde for possível.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895