Chital, o cervo que se multiplica no Rio Grande do Sul

Chital, o cervo que se multiplica no Rio Grande do Sul

Animal de origem asiática, presente em regiões do Rio Grande do Sul, desperta a discussão de como eliminá-lo de forma ambientalmente correta, já que não possui predadores e pode disseminar doenças

Por
Lucas Keske*

Um animal de aparência dócil, de extrema beleza e que pode remeter ao retratado no clássico filme infantil “Bambi” (Disney, 1942) tem sido objeto de estudo no Rio Grande do Sul por oferecer risco a animais silvestres e comerciais se não houver controle de sua população. O motivo é simples: o Chital, de nome científico Axis Axis, é uma espécie invasora que compete de forma desleal com os animais das regiões em que se estabelece. Oriundo das florestas de Índia, Nepal e Sri Lanka, não tem predadores naturais nas Américas. Além de exaurir os recursos, pode vir a ser reservatório de doenças para animais e seres humanos. Medidas de controle populacional foram implementadas no Estado, mas a discussão segue em aberto.

A espécie de cervo foi introduzida nos vizinhos Argentina e Uruguai, ainda nos anos 1930, devido ao interesse dos praticantes de caça esportiva, que viam no animal de grandes galhadas um "troféu”. Essa retomada histórica é feita pelo professor Márcio de Oliveira, pós-doutorando na Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em cervídeos, o qual revela que o primeiro avistamento da espécie em território brasileiro ocorreu em 2009, no Parque Estadual do Espinilho, no Rio Grande do Sul, na Tríplice Fronteira do Uruguai, Argentina e Brasil. Desde então, a espécie se expandiu ainda mais pelo território nacional e fundou populações estáveis. “Alguns animais cruzaram a fronteira, uma população se estabeleceu e começou a crescer. Então, começou a gerar indivíduos que estão se dispersando e aumentando a distribuição geográfica dentro do território brasileiro, ou seja, estão fazendo todo o processo de invasão do nosso território”, diz.

O professor explica que se tem conhecimento de duas grandes “populações estabelecidas” destes animais no Estado: no Parque do Espinilho e na Área de Proteção Ambiental do Rio Ibirapuitã. O docente revela que esses locais são os conhecidos, mas que não se descarta a possibilidade de haver mais. “A gente tem registro, hoje, dessa espécie por vários lugares do Rio Grande do Sul, incluindo praias, regiões urbanas e a região metropolitana de Porto Alegre. Nós também já temos registros deles nos estados de Santa Catarina e do Paraná”, destaca.

O Chital tem a capacidade de consumir diferentes tipos de plantas. Desta forma, há uma preocupação principalmente com a soja, já que é uma leguminosa que os cervídeos podem consumir e, dessa forma causar prejuízos econômicos, não só pelo consumo das lavouras, mas também por pisoteamento.

Chital observado em Mudumalai, na Índia. | Foto: Freepick / CP.

A possibilidade de o Chital ser reservatório de doenças que possam prejudicar animais de produção, como bovinos, caprinos, equinos e ovinos, também causa apreensão, explica a bióloga especialista em Ecologia de Cervídeos Neotropicais e que conduz um mestrado pela UFPR sobre o potencial impacto do invasor na fauna nativa, Isabela Trentini. Por também ser um herbívoro e já ter sido avistado fora de regiões de preservação ambiental, o animal pode competir com os rebanhos por alimentação e, mesmo que não se aproximem, disseminar doenças. A especialista relata que, em outros lugares do mundo que foram invadidos pela espécie (Austrália, Europa ou Estados Unidos), já foi confirmada a transmissão pelo cervo de patologias como a doença da língua azul, a tuberculose bovina e até a febre aftosa.

De acordo com Márcio Oliveira, em uma hipotética situação de enfermidade no Chital, cervídeos nativos seriam os primeiros afetados, devido à proximidade biológica. Mas doenças específicas do cervo exótico poderiam afetar diversas outras espécies de ungulados (mamíferos dotados de casco), considerados “parentes” do Chital.

No dia 14 de junho de 2022, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (Sema) publicou a Portaria Nº 109/2022, que regulamenta a caça de cervos Axis Axis dentro de áreas de preservação do Rio Grande do Sul. Contudo, de acordo com a assessoria de comunicação da pasta, o texto está sendo revisado e terá nova versão publicada. Mas em 19 de maio de 2023, a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) publicou a Instrução Normativa nº 001/2023, que complementa a Portaria da Sema, e legaliza o transporte das carcaças destes animais pelo Estado. Na prática, permite que esses animais sejam alvos de caça para consumo próprio. “Todo mamífero doméstico ou selvagem pode ser vetor de algum tipo de doença. O que não pode acontecer é que esse animal chegue numa cadeia de consumo”, esclarece o chefe da Divisão de Defesa Sanitária Animal (DDA) da Seapi, Fernando Groff.

De qualquer forma, os especialistas não aconselham o consumo da carne do Chital justamente pelo desconhecimento dos riscos que oferece. Segundo Isabela, a espécie já foi identificada em outros países como hospedeiro intermediário de helmintos Echinococcus granulosus, parasita causador da verminose Equinococose, também conhecida como doença hidática em seres humanos. O RS já teve problemas com a doença. De acordo com o Núcleo de Informações em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Estado e do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, 52 pessoas morreram em consequência da doença hidática no Estado no período de 1996 a 2013. "Ainda mais por existir o registro desta doença na região, é necessária uma cautela em permitir o consumo da carne”, alerta Isabela.

Tanto Isabela quanto Oliveira têm uma visão pragmática quanto ao abate do Chital e defendem a adoção de procedimentos ambientalmente corretos para se evitar danos a outros animais ou a seres humanos. “Não queremos que haja um bang bang desenfreado, nem que sejam tratados como animais de estimação”, resume Márcio.

*Sob supervisão de 
Nereida Vergara

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895