Cinquenta anos de uma grande revolução

Cinquenta anos de uma grande revolução

Instituído no Brasil em 1972, por iniciativa do imigrante alemão Herbert Bartz, o plantio direto, técnica que prevê a semeadura sobre palhada, deu à agricultura brasileira caráter conservacionista e segurança na produção em escala

Por
Nereida Vergara

Não existe para o produtor rural patrimônio maior que o solo em que planta. Sem ele, a melhor das tecnologias não é capaz de garantir a produtividade. Trata-se de uma incoerência acreditar que o agricultor intencionalmente faria algo para danificar e esgotar seu capital mais caro. Ainda hoje, há críticas contundentes à agricultura fundadas em seu impacto ambiental, sem levar em consideração os avanços que a atividade no Brasil conquistou nos últimos 50 anos. Um desses avanços revolucionou a semeadura no país em 1972, diminuindo de forma drástica um problema que tirava o sono de produtores e ambientalistas: a erosão. O plantio direto, forma de semear sem revolver a terra, que preserva a qualidade do solo e evita a fuga da água, está presente hoje em cerca de 38 milhões de hectares de lavoura brasileira, de um total de 72 milhões de hectares plantados em todo o país. 

No Rio Grande do Sul, é aplicado em pelo menos metade de toda a área plantada anualmente, de cerca de 8 milhões de hectares, conforme afirma o professor de Agronomia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutor em Ciências do Solo, Antônio Luis Santi. Ainda nos anos 40, o agricultor norte-americano Edward Faulkner começou a questionar o uso do arado convencional, que cortava a terra e incorporava a matéria orgânica num mesmo processo, como responsável pelos danos ao solo. As ideias de Faulkner passaram a ser reconhecidas, entretanto, a partir da Revolução Verde, que incorporou práticas agrícolas que tornaram possível a produção por escala. 

No Brasil, o plantio direto foi introduzido a partir da década de 70, por Herbert Bartz, agricultor de Rolândia, no Paraná, que observou violenta erosão em suas terras quando da ocorrência de chuva forte. Conforme a Federação Brasileira do Sistema do Plantio Direto, Bartz visitou os Estados Unidos e a Inglaterra para conhecer uma técnica chamada de "no-till", que consistia em abrir sulcos no solo para incluir sementes e fertilizantes sem arar. Os primeiros 200 hectares de soja plantados pelo método, batizado de plantio direto, foram implantados em outubro de 1972 por Bartz.

O maior patrimônio do produtor é o solo

O professor Antônio Luis Santi explica que até a introdução do método trazido por Bartz, de forma pioneira na América Latina, os problemas de produtividade e perda de solo fértil no Brasil eram graves. Segundo ele, para produzir uma tonelada de grãos o produtor sacrificava às vezes até 12 toneladas de solo. "O maior patrimônio fixo do produtor (mais que a agregação de estrutura, máquina e outros) é o solo. A prova disso é o preço que se paga hoje por hectare de terra, que pode ultrapassar os mil sacos de grãos em algumas regiões. Então houve grande interesse do produtor em preservar", comenta. 

Santi diz que a cultura da soja é hoje no Brasil a que mais aplica o plantio direto, mas que a prática está difundida entre a maior parte das culturas nacionais, com exceção das olerícolas (hortaliças em geral), para as quais ainda se estuda a melhor aplicação da técnica. Nas últimas cinco décadas, além do advento do plantio direto, a agricultura agregou muitos novos conhecimentos que melhoraram seu desempenho e o impacto da atividade na natureza, entre elas as biotecnologias e a agricultura de precisão.

"Recentemente, começaram a ser estudados novos passos para o plantio direto, que precisa evoluir também, ser repensado, já que nossas produtividades, embora altas, estão estagnadas", reflete. Para Santi, a evolução que deve ser hoje pelo produtor é adotar a cobertura das áreas de plantio durante o ano inteiro, com uso de plantas de cobertura como a aveia, a ervilhaca, o nabo, entre outras forrageiras. "Os vazios são prejudiciais ao solo e nosso desafio é convencer o produtor a adotar a cobertura de seus terrenos de forma permanente", completa.

O plantio direto é prática dominante no estado

O diretor técnico da Emater/RS-Ascar, Alencar Rugeri, destaca que o plantio direto faz parte de um sistema de estratégias e não apenas de manejo da plantação. Lembra que para iniciar a prática o produtor deve fazer a análise físico/química do seu solo. "Depois de fazer as correções necessárias, aí sim o produtor pode implantar o sistema, que deve se estender por toda a propriedade e para todas as culturas que ele produz", aponta Rugeri. O agrônomo diz que o sistema prevê a cobertura permanente de todas as áreas, sem terrenos de pousio (onde a terra é deixada sem semeadura de um ano para o outro "para descansar"). No Rio Grande do Sul, o diretor técnico acredita que o plantio direto é uma prática dominante, mas a aplicação do sistema ainda não é plena.

Produtor de grãos e pecuarista, o presidente da Federação da Agricultura do Rio Sul (Farsul), Gedeão Pereira, considera que o meio século de introdução do plantio direto do Brasil deve, com muita justiça, ser comemorado. “Foi de fato uma revolução, uma linha divisória na nossa produção, que transformou e mantém hoje o Brasil como a grande fazenda do mundo”, pontua.

Assessoria para mais de 2 mil decisões no plantio

A aplicação do plantio direto no Brasil cresce em torno de 8% ao ano, afirma o presidente do Conselho Adinistrativo da agritech ConnectFarm, Guilherme Lobato, segundo o qual a extensão do sistema no país é mais que o dobro da dos Estados Unidos, onde as semeaduras ocorrem em janelas menores e muito influenciadas pelo clima | Foto: Paulo Odilon Kurtz / Embrapa Divulgação / CP.

A adoção do sistema do plantio direto é simples, mas exige do produtor o domínio de muitas informações climáticas, ambientais, tecnológicas e econômicas , o que estimula a contratação de serviços especializados pelas propriedades

Entre a experiência de Herbert Bartz, em 1972, de plantar 200 hectares de soja sobre a palhada, e os 38 milhões de hectares semeados hoje por alguma das técnicas do plantio direto, há um longo aprendizado. Se antes o produtor experimentava como fazer para conter a erosão e aumentar sua produtividade, hoje tem um manancial de informações para ajudá-lo, e empresas com expertise para tornar a tarefa precisa e segura do ponto de vista dos resultados. A experiência brasileira é tão bem avaliada que já ganha espaço em outro gigante da agricultura, os Estados Unidos. É lá, em Nova York, que está instalado Guilherme Lobato, presidente do Conselho Administrativo da ConnectFarm, agritech gaúcha que vai levar aos produtores norte-americanos o serviço já utilizado por mais de 500 agricultores em 10 estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, São Paulo e Tocantins. 

A ConnectFarm, com três anos e meio de existência, fornece ao produtor dados necessários para a implantação e gestão do sistema de plantio direto. A empresa cruza informações climáticas, com condições de solo de cada região, tipo de plantas adequadas à cobertura, manejo de doença e uso de insumos. “É um conjunto de informações específicas para cada talhão da fazenda, destinado a gerar lucro para o agricultor”, esclarece o executivo. Os pacotes tecnológicos contam com coleta e análise químicas e físicas do solo, índice de gestão ambiental, taxas de fertilizantes e sementes, recomendações de rotação de cultura e de plantas de cobertura, além de visitas a campo.


Conforme Lobato, a busca de informações sobre o sistema de plantio direto tem aumentado na média de 8% a 10% ao ano. A ampliação para o mercado americano se apoia especialmente nos resultados obtidos no Brasil com a prática que, afora os reflexos na produção, é conservacionista.

"Estamos trabalhando no momento com empresas de insumos, pesquisando plantas de cobertura adaptadas ao clima temperado, e no ano que vem devemos iniciar as nossas operações com o agricultor norte-americano”

A metodologia a ser difundida nos Estados Unidos deve ser adaptada às particularidades do sistema agrícola daquele país, cujas janelas de plantio são menores que as brasileiras e os prazos de colheita mais exíguos. Hoje, comenta Lobato, apenas 21% da área plantada dos Estados Unidos com soja e milho - cerca de 75 milhões de hectares conforme dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) - têm o plantio direto. “Estamos trabalhando no momento com empresas de insumos, pesquisando plantas de cobertura adaptadas ao clima temperado, e no ano que vem devemos iniciar as nossas operações com o agricultor norte-americano”, conclui.

Colheita três vezes superior à média na estiagem

Lucas ganhou do pai o título de “Rei da Palha” e aos 5 anos já aprende como se faz o plantio direto | Foto: Wanderley Neus / Divulgação / CP.

Propriedade do município de 15 de Novembro, na região do Alto Jacuí, conseguiu colher mais de 60 sacos de soja por hectare na safra 2021/2022, marcada pela ausência de chuva, benefício da adoção do plantio direto há mais de 25 anos

Na safra 2021/2022, quando o Rio Grande do Sul sofreu uma das piores estiagens de sua história e metade da soja plantada no Estado foi perdida, a média de produtividade nas lavouras gaúchas da oleaginosa foi de 24 sacas por hectare, o equivalente a 1.400 quilos de grãos. No mesmo período, o produtor Wandeley Neus, do município de 15 de Novembro, no Alto Jacuí, conseguiu colher 61 sacas de soja por hectare, cerca de 3.600 quilos. Na região da propriedade, a chuva sacrificou mais o milho que a soja, mas Neus aponta um fator, na visão dele inquestionável, para a manutenção de sua rentabilidade: o solo coberto há 28 anos pelas técnicas do plantio direto.

A história de Neus, agrônomo diplomado pela Unicruz, começou em 1993, quando ainda era aluno da escola agrícola do município de Sertão. Naquele tempo, os produtores da região faziam a semeadura tradicional, preparando a terra com a ajuda do arado. “Uma enchente naquele ano fez com que os produtores perdessem muito com a erosão e nós decidimos então fazer os primeiros processos de adoção do plantio direto. Fizemos uma subsolagem e corrigimos a terra com calcário, para depois iniciar o processo de cobertura permanente”, relata.

Mesmo sem estruturas de irrigação, o produtor colhe em média, nos anos considerados de safra normal, cerca de 100 sacos de soja por hectare, 200 sacos de milho e 70 sacos de trigo. Nenhuma de suas áreas, cuja extensão ele prefere não revelar, fica descoberta durante o ano. O agricultor explica que a rotação do milho nos terrenos de plantio é de fundamental importância. “O milho tem um sistema radicular agressivo que ajuda muito”, diz. Além do grão, cujas raízes atingem até 40 cm de profundidade, Neus utiliza outras plantas de cobertura, como o nabo- forrageiro, entre uma semeadura e outra.

“A palha é o meu maior patrimônio”, diz o produtor, que fez uma grande festa na propriedade para comemorar os 25 anos de adesão da família ao sistema. “Em tempos de estiagem extrema, o plantio direto não tem condições de fazer milagre, mas ajuda e muito a manter a lavoura protegida”, conta.

Segundo Wandeley Neus, a eficácia do plantio direto vem sendo ensinada há anos e cabe ao produtor saber se quer ou não fazer o certo. “Dentro do sistema de plantio direto, que inclui a rotação de cultura e a cobertura, a eficácia é garantida. Mas não é isso que é feito em grande parte do Rio Grande do Sul, onde já se vê regiões com alto índice de compactação do solo”, pontua. Conceitualmente, o sistema de plantio direto é descrito pela Embrapa como “o preparo do solo apenas na linha ou cova de semeadura ou de plantio, na cobertura vegetal permanente do terreno e na diversificação de espécies, na rotação e/ou consorciação de culturas, com mínimo intervalo de tempo entre colheita e semeadura ou plantio”.

Sendo o sistema de plantio direto, o maior patrimônio de Neus, é natural que já esteja em andamento a sua sucessão. Lucas, filho único do agricultor, hoje com 5 anos, ganhou quando nasceu o título de “Rei da Palha”. Gosta de acompanhar a família na lida, de plantar e de andar de trator. “É um guri muito querido e vai dar bom”, derrete-se o pai.

Efeito protetor e menor custo de produção

Agricultor de Carazinho, Rogério Pacheco conquistou com o plantio direto produtividades mais altas do que as médias do Rio Grande do Sul na soja e no milho | Foto: Rogério Ferreira Pacheco / Divulgação / CP.

O agricultor Rogério Ferreira Pacheco, de Carazinho, na região do planalto médio do Rio Grande do Sul, adota o plantio direto desde 1997. Migrou para o sistema depois de sucessivas enxurradas que lhe subtraíram toneladas de solo. Hoje, Pacheco planta 700 hectares da propriedade, cerca de 70% com soja e 30% com milho. Suas áreas, diz, nunca estão descobertas, uma vez que calcula como ideal para o terreno a ser semeado pelo menos 12 toneladas de matéria seca (palhada) por hectare.

O produtor iniciou a atividade como pecuarista mas foi migrando para a agricultura a partir do plantio direto. Segundo ele, 95% da área total da propriedade hoje são lavouras e com produtividades muito acima da média. Nos últimos anos, Pacheco tem colhido em torno de 72 sacos de soja por hectare e 168 de milho, ambas as culturas de sequeiro, portanto sem sistemas de irrigação. No Rio Grande do Sul, em 2021, a média por hectare na soja rondou os 55 sacos e no milho os 90 sacos, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento. “Tivemos quebra sim na safra passada, pois foram 45 dias sem chuva na região, mais ainda conseguimos colher metade do que havíamos estimado, bem mais do que quem não pratica de forma intensiva o sistema de plantio direto”, comenta.

Rogério Pacheco iniciou o plantio da soja na primeira semana de novembro, com a correta acomodação da palhada no solo para que as plantadeiras possam semear sem dificuldades. O produtor observa que há algumas coisas que, mesmo no plantio direto, precisam ser praticadas de forma permanente. É o a caso da adubação. “Mesmo no nosso caso em que o solo tem muita fertilidade e grande quantidade de minhocas”, comenta. Mas ele concorda que o custo de produção cai quando se instala o sistema, principalmente no que diz respeito a aplicação de herbicidas, que participam em menos de 30% do custo total.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895