Um dos maiores complexos hospitalares do RS, a Santa Casa de Porto Alegre também possui projetos em desenvolvimento, voltados para a aplicação de ferramentas de IA na atuação médica, principalmente na oncologia. Um deles prevê o uso da inteligência artificial como auxiliar na identificação precoce de tumores na região abdominal. De acordo com a oncologista clínica e pesquisadora da Santa Casa, Manuela Zereu, a ferramenta está sendo desenvolvida em parceria com a Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre (Procempa).
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No momento, o algoritmo de IA está ainda sendo abastecido com dados, a partir do envio de exames realizados em pacientes diagnosticados com câncer. Entretanto, as imagens enviadas para treinar a ferramenta não são do tumor em si, mas de alguns anos antes destes pacientes receberem o diagnóstico. O objetivo é que a IA identifique ou preveja a possibilidade de desenvolvimento de tumores em exames de imagens de forma precoce. Além da Procempa, o estudo é realizado em parceria com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos.
“São programas para rastreamento e diagnóstico precoce de câncer de pulmão e mama. Sabemos que existem estudos para ajudar a fechar o diagnóstico mais rápido. O que estamos tentando fazer e validar, principalmente na medicina de precisão, é usar a IA para auxiliar na busca por marcadores específicos em alterações celulares. Pegamos exames antigos de pessoas que têm câncer para ver se a IA consegue identificar que ela já tinha esse nódulo anos antes do olho humano”, contou.
Entretanto, para a oncologista clínica e pesquisadora, que tem participado ativamente em congressos no Brasil e no mundo sobre IA na medicina, a inovação no setor traz à tona o debate sobre ética e segurança na conduta do médico. “Será que tratar esse paciente cinco anos, por exemplo, seria melhor? São perguntas que precisam ser feitas. É o senso crítico que apenas o profissional tem. A IA participará, mas não vai passar de uma ferramenta. Será mais um membro da equipe, mas que não tem capacidade crítica para decidir condutas”, avaliou.
A médica da Santa Casa reforça ainda que a IA representa um modelo emergente para suporte de decisões, principalmente no manejo de pacientes oncológicos, mas que ainda carece de inovação e pesquisa para desenvolvimento de ferramentas que atendam a determinado fim na área médica. Além disso, Manuela Zereu aponta que essa tecnologia ainda precisará passar por validações para refletir se seus resultados serão benéficos para a conduta médica.
“A IA vai ser fundamental parte do tratamento do câncer e vai aumentar as capacidades do oncologista, mas sem substituir o médico. Ela vai ajudar criando algoritmos, agilizando processos e contribuir de diversas maneiras. Também temos desafios, por exemplo, na privacidade de dados e dilemas éticos. Na medicina, quando tu vai aplicar determinada solução, tu precisa fazer um estudo prospectivo. Toda tecnologia precisa ser validada para a população que vai ser usada, pois envolve confiança e, talvez, ela não tenha sido desenvolvida para o nosso meio efetivamente”, contou.
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O diretor-geral do Simers, o médico Willian Adami, entende que, ao mesmo tempo em que o futuro da medicina está cada vez mais aliado ao avanço da tecnologia, o desafio é preservar o protagonismo da atuação do médico, valorizando a relação humana entre profissional e paciente. “A IA abre caminho para diagnósticos mais rápidos e precisos, tratamentos individualizados e maior eficiência na gestão da saúde. Diminui-se o desperdício e abre-se caminho para investir melhor os escassos recursos financeiros disponíveis. O desafio, e o nosso compromisso enquanto entidade, é garantir que esse avanço ocorra de forma ética, segura e centrada no paciente”, reforçou.
Para o presidente do Conselho de Administração da Unimed Porto Alegre, o médico Marcio Pizzato, a tecnologia é um pilar estratégico para o futuro da área e deve ser utilizada aliando a eficiência que a inovação permite com a sensibilidade e o olhar humano. “Utilizamos IA para fortalecer o trabalho de nossas equipes. A tecnologia nos dá escala e capacidade preditiva, mas são os nossos médicos cooperados e os nossos colaboradores, com suas expertises, que transformam esses dados em ideias e ações efetivas. Estamos construindo uma medicina mais conectada, preditiva e, fundamentalmente, mais humana”, salientou.
Para o médico Otávio Cunha, cirurgião geral e oncológico e coordenador da Comissão de Inovação e Tecnologia da Associação Médica do RS (Amrigs), a entidade vê o avanço da IA na medicina como positiva, mas mantém-se consciente com relação aos desafios que a transformação impõe. Por isso, ele cita que as organizações médicas, como a própria Amrigs, o Simers e o Cremers devem atuar como mediadoras da transição, promovendo integrações seguras, éticas e responsáveis na aplicação da IA na prática médica.
“Trata-se de um momento de ruptura tecnológica comparável à chegada da internet, com potencial para redefinir a prática médica e aprimorar a segurança, a eficiência e a personalização do cuidado. Ao mesmo tempo, a Amrigs reconhece os riscos inerentes a essa revolução: as limitações dos modelos de IA, como alucinações, omissões e fabricações de informações, e o uso inadequado que pode ferir princípios éticos ou infringir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além da questão da responsabilidade por decisões em que a IA teve participação”, apontou.
Para ele, enquanto a IA se mostra mais evidente e eficiente em processos administrativos e hospitalares, a adoção na esfera clínica tem sido mais gradual e ainda carece de uma regulamentação robusta, ocorrendo através da adesão individual de médicos nas soluções baseadas em algoritmos de inteligência artificial. “A Amrigs acredita que a tecnologia, quando orientada por valores éticos e científicos, será um vetor essencial de aprimoramento do cuidado em saúde”, reforçou Cunha.
A necessidade desse debate incentivou o Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) a criar um Grupo de Trabalho (GT) com especialistas para tratar do tema. O GT resultou na criação de uma resolução, a 06/2025, que se propõe a criar bases de segurança no desenvolvimento de novas tecnologias de IA, de acordo com o vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade.
“A Resolução 06/2025 se propõe a dar um mínimo de segurança a médicos e pacientes diante do novo cenário criado a partir da popularização do uso da inteligência artificial em todas as áreas humanas e, particularmente, na Medicina. Recentemente o Cremers iniciou a utilização de plataforma de ensino chamada Adapta, que atualmente está sendo utilizada em caráter de testes, mas o plano é implementar em todos os setores”, finalizou Trindade.