Fundos agropecuários públicos em xeque

Fundos agropecuários públicos em xeque

Cadeias da vitivinicultura, da ovinocultura, da erva-mate, do leite e das florestas plantadas têm R$ 184 milhões no caixa único do Estado, mas burocracias dificultam acesso aos recursos e desmotivam contribuintes

Por
Itamar Pelizzaro

Há 26 anos, a lei 10.989 originou o Fundo de Desenvolvimento da Vitivinicultura (Fundovitis) para desenvolver o setor a partir das contribuições dos produtores de uva e das vinícolas do RS. Desde então, o mecanismo foi estendido às cadeias da ovinocultura (Fundovinos), da erva-mate (Fundomate), do leite (Fundoleite), da proteína animal (Fesa) e da silvicultura (Fundeflor). Conforme a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul (Sefaz), hoje, os fundos agropecuários somam cerca de R$ 184 milhões no Sistema Integrado de Administração de Caixa (Siac), o caixa único do Estado. 

Os instrumentos de apoio, entretanto, chegam aos dias atuais desacreditados pelos setores envolvidos. As críticas vão desde a morosidade na aprovação dos projetos até a extensa burocracia para a liberação dos recursos. E se tornam maiores frente à gestão privada, ágil e transparente do Fundo de Desenvolvimento e Defesa Sanitária Animal (Fundesa), pertencente às cadeias de proteína animal

Um dos setores que relata dificuldade para acessar os valores é o lácteo. O Fundoleite completará 10 anos de existência em dezembro e tem R$ 30,41 milhões no caixa do Estado, além de cerca de R$ 400 mil aportados mensalmente por produtores e indústrias. A indignação é tanta que a Comissão de Agricultura, Pecuária, Pesca e Cooperativismo (CAPPC) da Assembleia Legislativa do RS agendou audiência pública sobre o tema para o próximo dia 29 de junho. 

As queixas ganham força na crise impulsionada pelas seguidas e volumosas importações de lácteos do Mercosul. “Se o fundo funcionasse, as pessoas começariam a enxergar sua viabilidade, mas, nesse momento, se questionam se vale a pena continuar contribuindo”, diz o secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat), Darlan Palharini. “É vergonhoso. Os fundos não estão cumprindo seu papel. Ou deslancham para servir ao desenvolvimento das cadeias produtivas ou devem acabar”, dispara o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Carlos Joel da Silva.

Outro fundo contestado é o Fundovitis, que acumula R$ 125,5 milhões. “Passamos 2019 e 2020 sem receber nada e, agora, estamos na dependência de o Estado poder ou querer repassar o recurso”, critica o diretor executivo da Associação Gaúcha de Vinicultores (Agavi), Darci Dani. A gestão do capital é feita pelo Instituto de Gestão, Planejamento e Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado do Rio Grande do Sul (Consevitis-RS), constituído para administrar a aplicação de recursos após a dissolvição do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), que geriu os recursos da vitivinicultura entre 1997 e 2019. 

Já a ovinocultura, assolada por crises nos mercados de carne e de lã, aguarda a aplicação de uma lei sancionada em março de 2022. A norma passaria a administração de 98% do Fundovinos, criado há 25 anos e com saldo atual de R$ 8,47 milhões, para entidade do segmento. “O setor clama pela utilização destes recursos, pois, hoje, a demanda é muito grande. Vários segmentos aguardam que o valor retorne para fomentar, organizar e desenvolver a ovinocultura”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco), Edemundo Gressler. 

Com mais de R$ 13,5 milhões, o Fundo de Desenvolvimento Florestal (Fundeflor) também é alvo de críticas pela dificuldade de resgatar recursos e de aprovação de projetos e de pesquisa. O último foi apresentado pela Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor) em 2018. “Foi até assinado um convênio, mas era um momento em que o Estado não estava nem pagando o salário dos funcionários”, lembra o presidente da Ageflor, Luiz Augusto Alves. 

A cadeia produtiva da erva-mate, cultura símbolo da identidade gaúcha e primeiro patrimônio cultural imaterial do RS, tem queixas e R$ 6 milhões no Fundomate. “O fundo não funciona a contento para atender às necessidades do setor. Normalmente, demora três anos para cada liberação. Parece que é uma vez a cada gestão. É uma calamidade, uma novela, dá vontade de desistir”, desabafa o presidente do Instituto Brasileiro da Erva-Mate (Ibramate), Alberto Tomelero.

Restrições legais 

Os fundos agropecuários estão sob responsabilidade da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi). O chefe da pasta, Giovani Feltes, explica que as restrições aumentam em periodos eleitorais e que foram intensificadas desde que o Estado aderiu ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF). “O regime impõe circunstâncias que provocam maior volume de tramitação e burocracia”, pontua. Contudo, afirma que há, sim, liberação de recursos para vários fundos. “É natural que o pessoal se queixe pela demora, assim como argumentamos as motivações dessas demoras”. 

A Secretaria da Fazenda confirma que os fundos estão em execução, embora a gestão dos mesmos não esteja em seu escopo. “Não há represamento de recursos de fundos voltados ao setor agropecuário do Estado”, informa a Sefaz, em nota. “Durante a vigência do RRF, os fundos podem operar com aplicação direta e não há impedimento pelo regime. Porém, modalidades de convênios e despesas continuadas são liberadas mediante avaliação junto ao programa”, detalha a pasta.

Segundo a titular da Sefaz, Pricilla Santana, a possibilidade de liberar convênios, no âmbito dos fundos, sem a necessidade de avaliação caso a caso, é um dos temas em tratativas com a Secretaria do Tesouro Nacional na revisão do RRF, o que poderá garantir mais celeridade às análises. “Do ponto de vista orçamentário, todos estão liberados”, conclui.

Fundoleite tem nove projetos na fila de espera

Cobranças para a utilização do saldo do Fundoleite são intensificadas pelo momento crítico que vive o setor, com aumento no ingresso de leite em pó e de produtos lácteos dos países do Mercosul no Brasil, principalmente da Argentina e do Uruguai | Foto: Joseani Mesquita Antunes / Embrapa /  CP

Cadeia produtiva leiteira aguarda a liberação de R$ 20 milhões para executar ações propostas em 2021 e que estão em análise pelo Estado, além da publicação de edital para retomar os cálculos mensais do preço de referência do leite no RS

Um dos casos mais emblemáticos é o do Fundo de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite (Fundoleite). Um dos motivos da indignação é a morosidade na liberação de recursos para nove projetos que tramitam no Estado. As matérias são alvo de negociação desde 2021. Na época, segundo o secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat), Darlan Palharini, um decreto destinou 70% das arrecadações para assistência técnica, 20% para projetos de desenvolvimento e apoio à cadeia produtiva e 10% para custeio administrativo de entidade representativa do setor. “Neste acordo, o Estado pediu às empresas, que questionavam o fundo e faziam depósito judicial das taxas, que desistissem das ações. Isso foi feito, e foram apresentados nove projetos”, conta Palharini. 

O secretário da Agricultura, Giovani Feltes, explica que a morosidade decorre de alterações necessárias em um edital publicado à época. O caso ainda está na Controladoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) e na Procuradoria-Geral do Estado (PGE). “Os projetos somam em torno de R$ 20 milhões e estão próximos de deslindar-se”, garante Feltes.
Outra cobrança é a contratação de uma empresa para calcular o preço mensal de referência do leite no RS. O índice era projetado mensalmente pela Universidade de Passo Fundo (UPF) até 2022 e divulgado pelo Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite do Estado do RS (Conseleite/RS). “Ano passado, o setor assumiu os custos, mas, em 2023, tudo parou novamente. É um valor irrisório para o Estado e um serviço importantíssimo para a cadeia”, reforça Palharini. 

Feltes argumenta que, em 2022, o Fundoleite não custeou o serviço porque os outros nove processos (já mencionados) estavam em análise. Mas declara que o tema está sob responsabilidade da Subsecretaria da Administração Central de Licitações (Celic). “Há um mês, a Cage da Celic pediu indicação de profissionais que, pela experiência e formação, tivessem condições de estabelecer esse preço de referência. No dia seguinte, mandamos. Basta a Celic publicar essa licitação”, diz.

Fim do Ibravin impacta convênios do Fundovitis 

Por duas décadas, o Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) manteve convênio com o Estado para gerir os recursos do Fundo de Desenvolvimento da Vitinicultura (Fundovitis). Durante parte desse tempo, 50% das taxas pagas pelo setor entravam na conta do Ibravin, que tinha autonomia para trabalhar e buscar convênios, oferecendo contrapartidas a instituições e multiplicando o valor para investimentos. Mas o sistema foi descontinuado em 2019 e, até hoje, a mudança não é bem digerida pelo setor. A interrupção paralisou ações e levou a um acúmulo de R$ 125,5 milhões do Fundovitis no caixa único do Estado. 

A administração dos recursos veio em uma progressão na história do fundo. Entre 1997 e 2007, o setor administrava 18% dos valores, percentual que passou a 50% mais tarde. “De 2012 a 2019, funcionou dessa maneira”, lembra o então diretor do Ibravin Carlos Paviani. Essa lógica foi interrompida em 2019, por questões administrativas que extinguiram o Ibravin. 

Recursos acumuluados pelo setor produtivo e industrial da uva e do vinho, no caixa único do Estado, é de R$ 125,5 milhões. A quantia representa 68,2% do volume total de contribuições arrecadas por todos os fundos agropecuários em funcionamento | Foto: Embrapa / Divulgação / CP

O episódio deixou marcas. “O setor vitivinícola se ressentiu muito e não era o caso de ter acabado com um trabalho de 20 anos. Desde a saída do Ibravin, deixamos de aplicar R$ 50 milhões”, afirma o diretor executivo da Associação Gaúcha de Vinicultores (Agavi), Darci Dani.

Um novo convênio foi assinado em 2020, com o Conselho de Planejamento e Gestão da Aplicação de Recursos Financeiros para Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado do Rio Grande do Sul (Uvibra/Consevitis-RS). Depois, o Instituto de Gestão, Planejamento e Desenvolvimento da Vitivinicultura assumiu a tarefa. 

Este ano, o Consevitis iniciou a gestão de R$ 33 milhões do fundo, garantidos em convênio com a Seapi para três anos. Os valores serão parcelados, com repasses trimestrais após prestação de contas. Com a retomada, já houve investimentos em assistência técnica, no levantamento de dados sobre a produção e numa campanha para promoção de produtos do setor, que irá ao ar este ano.

Entre os desafios, agora, está a retomada da confiança nos produtores de uva, que se sentiram desconsiderados com a interrupção dos contatos. O coordenador do Consevitis, Luciano Rebelatto, relata que a interrupção das atividades também trouxe prejuízos aos programas de certificação de boas práticas agrícolas e de certificação de qualidade dos produtores, feitos em convênio. “Cada mudança de governo é um recomeço que acaba atrasando a execução. No ano passado, cogitou-se abandonar e extinguir o fundo e fazer o repasse direto ao Consevitis.”

Fundesa inspira novos caminhos

Fundo pagou mais de R$ 42 milhões em indenizações desde 2009, principalmente para o setor do leite, e investiu R$ 32 milhões em capacitação e informatização das inspetorias 

Em oposição ao desempenho dos coirmãos públicos, o Fundo de Desenvolvimento e Defesa Sanitária Animal (Fundesa) tem um sistema consolidado e citado como exemplo a ser seguido, inclusive em nível nacional. Com saldo superior a R$ 125 milhões, o Fundesa tem administração privada e investe na capacitação de pessoal técnico, em aquisição de insumos e equipamentos e na melhoria da infraestrutura, além de manter convênios com instituições para aprimorar o trabalho de inteligência. 

Segundo o presidente do Fundesa, Rogério Kerber, o embasamento técnico é a diretriz do fundo. Sua governança é regulamentada por lei, com recursos liberados apenas mediante a apresentação de projetos, avaliados nos conselhos técnico operacional e deliberativo, com auditoria de diferentes órgãos de controle. A prestação de contas é trimestral e está disponível on-line. 

Ao longo da história, o Fundesa financiou a informatização das inspetorias de defesa agropecuária do Estado e a constituição do Sistema de Defesa Agropecuária (SDA), além de reformar e revitalizar inspetorias e de postos fiscais de divisas. Kerber calcula que o fundo já pagou mais de R$ 42 milhões em indenizações a produtores desde 2009, especialmente para a cadeia do leite, e investiu R$ 32 milhões em insumos, inspetorias, informatização e capacitação.

Recursos do Fundesa financiaram a informatização dos postos de defesa agropecuária do Estado e a constituição do Sistema de Defesa Agropecuária (SDA), além de reformas e revitalização dos locais      | Foto: Fernando Dias / Seapi / CP

A atuação do Fundesa é respaldada pela diretora do Departamento de Vigilância e Defesa Sanitária Animal da Secretaria da Agricultura, Rosane Collares. “O Fundesa nos traz uma agilidade impressionante. É de extrema importância ter um fundo bem estruturado para as ações de defesa sanitária animal, uma vez que a defesa é extremamente dinâmica e, por mais que se façam previsões e programações de utilização de recursos, as ações podem demandar questões não previstas”, diz. “Exemplo disso é que nas três últimas auditorias do Mapa, o Fundesa recebeu nota máxima na avaliação devido sua transparência, agilidade e forma de atuação".

O sucesso levou o ex-deputado federal Jerônimo Goergen a apresentar projeto para criar um fundo nacional inspirado no Fundesa. A matéria está na Comissão de Finanças e Tributação desde novembro de 2021. “Poderia ser uma boa solução para o financiamento da sanidade no país”, acredita Goergen, que participou das articulações para criação do fundo em 2005.

O ex-secretário da Agricultura Odacir Klein comandava a pasta da Agricultura na época, integrou o processo de articulação para criação do fundo e acompanhou o trabalho. “Não quero fazer afirmativa, mas acho o modelo Fundesa o modelo a ser seguido, inclusive em outras unidades da federação.”

Fundovinos à espera de novo edital

Após três anos de tramitação na Assembleia Legislativa, um projeto de lei aprovado em março de 2022 mudou a gestão do Fundo de Desenvolvimento da Ovinocultura do Estado (Fundovinos). No mês seguinte, o governo estadual anunciou a sanção da lei que autorizava a Secretaria da Agricultura (Seapi) a celebrar parceria com entidade do setor que iria gerir 98% dos recursos depositados no fundo. 

Mais de um ano depois, a Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco) trabalha com a Secretaria da Agricultura na construção do edital de chamada pública para operacionalizar a mudança. O presidente da Arco, Edemundo Gressler, tinha esperança de que a transição fosse mais rápida. O Fundovinos tem saldo de R$ 8,4 milhões, mas, segundo Gressler, o setor não consegue aplicá-lo em ações de apoio à ovinocultura de carne e de lã e em exposições. “A gente que é do campo acha que tudo é mais simples e fica penalizado por essas questões da burocracia da coisa pública”, diz. 

O secretário da Agricultura, Giovani Feltes, explica que o processo enfrentou as barreiras do período eleitoral e da nova realidade do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). “Com a brevidade que a burocracia permita, vamos publicar este edital para que este chamamento dê oportunidade para que alguma entidade venha a gerir essas ações”, comenta. 

Gressler admite que existem pensamentos favoráveis à administração privada das taxas pagas pela cadeia produtiva da ovinocultura e atualmente represadas. “A transformação em fundo privado pode ser um caminho muito bom, mas depende de mudança de lei, e temos clareza de que o privado não dá liberdade, mas agilidade”, analisa.

Cadeias põem Fundeflor e Fundomate na berlinda 

Com mais de R$ 13,5 milhões, o Fundo Estadual de Desenvolvimento Florestal (Fundeflor) também gera cobranças. Em 2018, a Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor) pretendia divulgar ações do setor. “Cheguei a assinar convênio com o Estado, mas esse recurso nunca foi liberado”, lembra o ex-presidente Diogo Leuck, presidente da Câmara Setorial de Florestas Plantadas no Ministério da Agricultura.

Leuck discutiu com outras entidades a alteração da lei para privatizar a gestão do Fundeflor. “Temos de tirar esse recurso do caixa único e colocar na mão de quem vai gerir o desenvolvimento do setor. Hoje, para conseguir fazer o que está previsto em lei, tem que rezar o calvário, e olhe lá”, reclama. 

Foto: Eduardo Seidl / Divulgação / CP 

A Secretaria da Agricultura informa que entregou, em 2021, o sistema de cadastro florestal e controle de arrecadação, como parte das ações do fundo. Informa que o orçamento para 2023 é de R$ 2,2 milhões e que executou R$ 23 mil em 2022. 

A mudança para administração privada também está no radar do presidente do Instituto Brasileiro da Erva-Mate (Ibramate), Alberto Tomelero, que não poupa críticas à operação do Fundo de Desenvolvimento e Inovação da Cadeia Produtiva da Erva-Mate (Fundomate). No passado, o setor cogitou parar de pagar ao fundo, mas foi convencido pelo governo a ficar. Conforme Tomelero, desde 2013, o Ibramate teve acesso a recursos do Fundomate, atualmente com R$ 6 milhões, em apenas quatro ocasiões. “A última chamada foi aberta em janeiro de 2022. Somente este ano assinamos convênio de R$ 1,7 milhão, que ainda é parcelado em duas vezes. 

A Secretaria ressalta a assinatura de parceria com o Ibramate e a liberação de uma parcela de R$ 850 mil para ações do setor. Conforme a pasta, o orçamento previsto é de R$ 1,6 milhãos. Em 2022, foram executados cerca de R$ 27 mil.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895