Oito meses da enchente: as marcas da tragédia que ainda resistem em Porto Alegre

Oito meses da enchente: as marcas da tragédia que ainda resistem em Porto Alegre

O ano de 2025 já começou, mas as marcas da cheia histórica de maio de 2024 seguem vivas na memória de porto-alegrenses

Escombros da enchente ainda fazem parte da paisagem da Ilha da Pintada

Por
Rodrigo Thiel

O trágico ano de 2024 acabou, mas as marcas das catástrofes climáticas vivenciadas pelos gaúchos seguem vivas, seja na memória de quem sofreu com a cheia, seja de forma física nas regiões mais atingidas. Após exatos oito meses da enchente em Porto Alegre, basta uma breve circulada por bairros como o Arquipélago ou Sarandi para identificar uma quantidade considerável de placas de “vende-se” e “aluga-se”, além de imóveis que foram abandonados pelo receio de que novos desastres aconteçam.

Um levantamento recente do Sindicato da Habitação do Rio Grande do Sul (Secovi/RS) mostra que, por outro lado, a maior procura é por imóveis localizados em bairros não atingidos ou menos prejudicados pela enchente. Além disso, outro estudo inédito realizado pelo setor de a Inteligência de Mercado da entidade aponta que imóveis localizados em áreas atingidas e colocados à venda em abril deste ano tiveram seu preço de mercado reduzido entre 11,03% (residenciais) e 12,33% (comerciais) após a cheia.

Os bairros com maior quantidade de imóveis residenciais que registraram recuo nos preços foram Tristeza, Menino Deus, Cristal, Ipanema, Sarandi e Centro Histórico. O estudo reforça ainda que a enchente, aliada à alta na taxa de juros, tornou ainda mais caro os financiamentos de imóveis. “Infelizmente, não é possível estimar quando os setores, incluindo o mercado imobiliário, se recuperarão das enormes consequências que essa catástrofe ambiental deixou nos empregos, nos imóveis, nos bens pessoais, enfim, na vida do povo gaúcho”, citou a economista do Secovi/RS, Lucineli Martins.

Do Sarandi às ilhas, placas de "vende-se" e "aluga-se" refletem esvaziamento de bairros afetados | Foto: Pedro Piegas

Apesar deste esvaziamento de alguns bairros e da dificuldade no repasse destes imóveis, a realidade para muitos que cresceram e vivem até hoje em áreas afetadas pela é lutar continuar residindo nestes locais. Um destes casos é o da moradora da Ilha da Pintada, Antônia Margareth Dias, de 67 anos, que pretende reconstruir a sua casa no terreno onde a atual moradia está condenada, com as paredes tortas e poucos móveis, na avenida Presidente Vargas.

“Isso é o que sobrou da estrutura dela. O que tinha de móveis e eletrodomésticos aqui foi tudo. Hoje eu vim para limpar o pátio. Essa cada aqui vai ser desmontada e eu estou vendo se consigo fazer outra, pois não quero sair daqui. Eu tive que alugar um apartamento para morar no bairro Santana, mas não me adaptei. Não consigo ficar lá. Fazem mais de 40 anos que moro aqui na ilha, então tem toda uma história de vida nesse local”, salientou.

Apesar disso, ela reconhece que, após a cheia, muitos moradores deixaram a região, tornando a ilha um local quase ermo. Entretanto, ela cita que o poder público também precisa ajudar aqueles moradores que desejam permanecer a região. “Eu já não tenho mais vizinhos. A casa ao lado, por exemplo, desabou. Então tem menos gente na ilha. O comércio abriu faz pouco também. Mas eu já falei que quero seguir aqui. Acho que o poder público poderia ajudar as pessoas que querem ficar a reiniciarem as suas vidas aqui. Além de ajudar quem quer sair, seria bom dar condições para quiser seguir morando nas ilhas”, completou.

Dona Antônia, moradora da Ilha da Pintada, pretende construir um novo lar onde a atual casa está condenada | Foto: Pedro Piegas

As marcas da enchente na Ilha da Pintada ainda seguem vivas. Carros abandonados, marcas de mãos embarradas e casas devastadas. Dentro delas, é possível identificar que ainda restam itens pessoais, como porta-retratos e álbuns de fotos, mostrando que o local já recebeu vida e que as lembranças agora foram tomadas pelo vazio. Em meio a escombros como esses, também na Ilha da Pintada, é que vive o pescador Luciano Oliveira, de 49 anos. A plataforma de pesca que usa e a casa que reside fica ao lado de restos de construção que já foram o lar de seus familiares.

“Aqui do lado moravam dois sobrinhos meus e a minha mãe. Um deles vai tentar voltar. A minha casa ficou só o telhado de fora, mas ainda conseguir reaproveitar a casa em partes. É o que temos para morar. Não dá para sair da ilha. O pescador precisa da ilha para viver. Não dá para colocar o barco em um apartamento. Nós trabalhamos com a água. Acredito que pouco menos da metade dos moradores deixou a ilha. Quem saiu, na realidade, não é morador nato aqui. Quem é nascido aqui não quer sair. A nossa história está aqui”, relatou o pescador.

O pescador Luciano Oliveira convive é vizinho dos escombros das casas de seus familiares | Foto: Pedro Piegas

Do Arquipélago para a zona Norte, a sensação é similar em meio a um cenário que ainda sofre com as consequências da cheia. Moradora da rua João Luiz Pufal, no bairro Sarandi, Terezinha Serafim Jacinto, de 82 anos, conta que não pretende deixar a casa onde reside há mais de 50 anos por conta do amor pela comunidade.

“Tenho sentido menos movimento no bairro, pois muita gente ainda nem voltou para casa. Mas a minha rua é de muito carinho de todos. Somos uma comunidade forte e, no meu caso, seria difícil começar uma vida nova em outro lugar, onde ninguém me conhece. Sinto que eu ainda preciso seguir aqui. Essa é a minha rua. O que eu quero é continuar aqui”, contou a moradora.

Apesar da idade avançada, Terezinha atua de forma voluntária na região. Ela conta que recebe algumas doações de amigos e empresários, e distribui os donativos pessoas da comunidade que precisam de ajuda. “É muito triste saber que as pessoas não têm o que comer, principalmente depois de tudo o que essa comunidade passou”, complementou a idosa.

Paisagem da Ilha da Pintada é marcada pelos escombros da enchente de maio de 2024 | Foto: Pedro Piegas

Desafio em repensar o uso do território

Para o secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) e coordenador do Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática, Germano Bremm, o convívio da população que desejar ficar em áreas atingidas, especialmente na região das Ilhas, é um dos principais desafios a ser repensado no pós-enchente. Segundo ele, a prefeitura buscou apoio de uma universidade dos Países Baixos e parceiros locais para criar um plano urbanístico integrado para o território que fica fora do sistema de proteção contra cheias da Capital.

“O apoio é para repensar do ponto de vista do uso, no sentido de construir uma convivência da comunidade naquele local. Esperamos que seja possível a permanência destas famílias, pois sabemos da importância que a região tem na sua formação e em seus vínculos. Mas, para conviver com eventuais subidas das águas, serão necessárias medidas de mitigação. É uma área muito sensível e, caso suba a água, a população vai ter que receber o alerta, sair do local e retornar depois. Ainda não temos todas as respostas, por isso buscamos especialistas e investimos mais de R$ 7 milhões para repensar o território sobre essa perspectiva do convívio com a água”, relatou.

Manutenção dos trabalhos de reconstrução

A própria atuação do Escritório da Reconstrução e Adaptação Climática de Porto Alegre foi mantida por mais um ano. Inicialmente previsto para encerrar em 31 de dezembro de 2024, a Câmara de Vereadores aprovou o seguimento dos trabalhos até o último dia 2025. Ainda de acordo com o secretário Bremm, a autorização para a renovação por mais um ano ocorreu em função da importância do processo de reconstrução da Capital.

“O prejuízo público estimado na cidade foi de mais de R$ 12 bilhões. No setor privado, a gente teve um prejuízo de perda de capital de mais de R$ 6 bilhões. Além disso, temos um alto custo mensal pelo não funcionamento dos equipamentos da cidade. Então, é muito importante recuperar isso tudo para devolver a normalidade à cidade, para que ela continue pujante, gerando riqueza, retendo e atraindo talento, e promovendo a transformação econômica e, principalmente, social”, apontou.

Além disso, o secretário detalhou, em números, a atuação da pasta. Segundo ele, Porto Alegre teve 309 equipamentos públicos que foram totalmente ou parcialmente destruídos. Além disso, o escritório já realizou a contratação de 225 obras, sendo que 84 já foram concluídas e outras 75 seguem em andamento. Com isso, dos 309 equipamentos atingidos, 278 já estão em operação.

“Essas obras são complexas. Algumas estão em andamento e outras ainda devem começar. É um trabalho longo, mas extremamente relevante pelo impacto que causa na cidade. Apesar da evolução significativa nos números de obras, nas entregas e nos equipamentos em funcionamento, ainda temos muitos desafios pela frente”, completou Bremm.

Entre as dificuldades que ainda precisam ser enfrentadas, o secretário cita que os principais deles envolvem o trabalho conjunto entre município, Estado e União para a revisão dos sistemas de proteção, integrando uma estrutura que atenda toda a região Metropolitana, além da busca pelas moradias prometidas para as famílias que perderam suas casas na tragédia.

Com relação ao primeiro ponto citado, Bremm reforça que Porto Alegre já deu seus primeiros passos a partir da contratação de especialistas para revisar o sistema existente. “Eles vão pensar em um sistema também em direção à zona Sul. Temos que nos tornar mais fortes e preparados com essa integração com Estado e União, para que esses recursos efetivamente cheguem nesse novo sistema de proteção pensado para toda a região”, salientou.

Já com relação à moradia, o secretário explicou que a prefeitura tem feito sua parte com a produção dos laudos necessários para que o Governo Federal destine uma moradia para quem perdeu sua casa. “Já enviamos mais de 5 mil laudos para a União. O custo para produzir esses laudos está em cerca de R$ 9 milhões. Só que nós temos apenas 1.967 aprovados e, efetivamente, o percentual daqueles que têm a chave da nova casa é muito pequeno. Fazemos a nossa parte em atender as portarias, localizar as famílias e produzir laudos. É um esforço hercúleo e um desafio muito grande para alcançar o maior número de famílias com uma moradia digna”, reforçou.

Germano Bremm destacou ainda que a Smamus já havia iniciado um processo de preparação da cidade para eventos extremos antes mesmo da enchente, com a a criação de Plano de Ação Climática e com um inventário e redução da emissão de gases do efeito estufa. Todos planos e estudos para a adaptação da cidade devem ser incluídos na revisão do plano diretor.

“Com a tragédia, toda a sociedade evolui e, a partir disso, surgirá uma nova Porto Alegre, mais forte, mais resiliente e mais preparada. Nós não vamos conseguir impedir esses eventos extremos. Eles são uma realidade. O aumento da temperatura do planeta tem causado efeitos no mundo todo, não só em Porto Alegre. Vários locais também têm sofrido efeitos econômicos e sociais. Então nós vamos ter que buscar uma forma de conviver com isso”, finalizou.

Avanços em dezembro de 2024

Ao longo do mês de dezembro de 2024, diversos equipamentos atingidos pela enchente tiveram seus serviços retomados. Uma das principais estruturas que deram mais um passo em direção à normalidade foi o Aeroporto Salgado Filho, que recuperou o seu status de “internacional” com a conexão aérea com a Cidade do Panamá. O primeiro voo entre as duas cidades ocorreu na madrugada do dia 19. Neste dia 3 de janeiro, aniversário de oito meses da enchente na Capital, está prevista a retomada da conexão para Santiago, no Chile, e Lima, no Peru.

Além do terminal aeroportuário, a malha ferroviária deu mais um passo em direção à retomada completa quase oito meses depois da cheia. No dia 24 de dezembro, as viagens do Trensurb voltaram a ocorrer ao longo de toda a linha, entre as estações Mercado e Novo Hamburgo. Entretanto, a baldeação por ônibus na estação Farrapos ainda é necessária para quem utilizar o metrô de segunda a sábado entre as 20h e 23h, assim como o dia todo aos domingos.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895