Diante da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, que completa um ano em maio, a solidariedade voluntária nos espaços de acolhimento temporário, realizada de maneira espontânea ou não, fez uma grande diferença no apoio aos atingidos.
O levantamento “Modelo a toda Terra: o voluntariado nos abrigos das enchentes do RS - Estratégia emergente de gestão de voluntários e alto engajamento”, publicado pela consultoria gaúcha MGN no final do ano passado, mostrou o que deu certo e o que pode ser melhorado em eventuais novas situações onde houver esta demanda.
Especializada em desenvolver estratégias de impacto social, ela entrevistou cem organizações da sociedade civil em novembro; 77 delas por telefone e 23 via formulário online. Mais da metade (54%) eram de Porto Alegre e outros 17% de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, além de outras cidades do Estado.
Os resultados mostram boas avaliações quanto à gestão das tarefas em abrigos, além de algo que foi visto de maneira empírica por quem esteve no local: a disposição de pessoas de simplesmente estender a mão a partir do caos, mesmo sem nenhuma experiência prévia neste tipo de evento.
Por exemplo, dois terços dos respondentes disseram não ter recebido qualquer treinamento ou orientação formal durante sua atuação, e 64% relataram que os voluntários foram postos para atuar nos locais após ir até eles espontaneamente.
A partir da situação caótica em toda parte, foi preciso desenvolver estratégias e um controle básico de pessoas e tarefas.
“Percebemos, com a pesquisa, que as pessoas se organizaram rapidamente, colocaram ordem nas coisas, tentaram tirar o máximo proveito do trabalho destes voluntários naquele momento de emergência”, relatou o sócio-fundador e diretor executivo da MGN, Marcelo Nonohay.
Para 54%, não houve nenhum tipo de priorização por habilidades nos abrigos.
O estudo também apontou os meios de ajuda a eles. Cada pessoa entrevistada podia escolher mais de uma alternativa. Para 76%, a população local foi a principal parceira destes espaços, seguida por empresas locais e organizações religiosas.
O primeiro agente público citado, as prefeituras, aparece na quarta posição, respondida por 47% dos consultados. Organizações não-governamentais (ONGs) vêm em seguida. Na segunda e pior parte do levantamento, são citados os baixos apoios da Brigada Militar (37%), Exército (30%), outras forças de segurança (24%), governo do Estado (10%), governo federal e Força Nacional, ambos com 8%.
A Defesa Civil Estadual, procurada, disse que tanto o órgão quanto a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social (Sedes) não possuem estimativa de quantos voluntários atuaram no contexto das enchentes. O governo, porém, informava que, até dia 26 de fevereiro, 12 municípios ainda contavam com um total de 18 abrigos e 870 pessoas permaneciam desabrigadas. Canoas, na Região Metropolitana, liderava no número de desabrigados, com 332 ao todo.
Já o número de instalações no RS era liderado por Canela, na Serra, curiosamente um município não afetado diretamente pelas enchentes, com cinco unidades em atividade. O Censo sobre os Abrigos Provisórios no RS, feito um mês após as cheias por órgãos governamentais, como a Sedes e Secretaria Estadual da Saúde (SES), Ministérios da Saúde e Desenvolvimento Social, além do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), apontou que o RS chegou a ter 981 abrigos temporários em 117 cidades, nos quais havia 69,4 mil pessoas, ou 18,1 mil famílias.
Do total, 15 mil eram crianças e adolescentes, 3,9 mil pessoas de 0 a 5 anos de idade, 2 mil pessoas com deficiência e 7,4 mil idosos. Somente em Porto Alegre, nos primeiros dez dias após as inundações, a Prefeitura relatou ter recebido mais de 17 mil inscrições para voluntariado.
O alto índice percebido da ajuda advinda da própria comunidade pode auxiliar a compreender um dos slogans informais nascidos em meio à tragédia, “o povo pelo povo”, que, em determinados contextos, foi alvo de críticas, justamente por assumir que a população assumiria sozinha as rédeas da situação e o apoio governamental era dispensável.
“É preciso analisar isto com muita cautela, porque este discurso acabou se politizando um pouco. Acredito que houve um aprendizado que já havia a partir da pandemia da Covid-19, de que ‘todo mundo está no mesmo barco’, mas quem é mais vulnerável está sem salva-vidas”, salientou ele.
Para Marcelo, este dado reflete a percepção das pessoas no dia a dia dos abrigos, em que, por exemplo, as doações vinham da comunidade e empresas privadas, enquanto as administrações municipais, naturalmente, estavam mais presentes do que os entes públicos superiores cuja atuação foi mais pontual. “Com certeza, a ajuda veio de todas as esferas”, afirmou.
A partir da população, surgiram iniciativas espontâneas como a plataforma online Ajuda-RS, um grande compilado feito por Victor Arnt, estudante de Engenharia de Computação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), reunindo diversas outras listas de voluntários e informações de agentes públicos.
A tecnologia, aliás, também foi bastante aliada dos atuantes nos locais de abrigamento, com 64% dos entrevistados relatando que o WhatsApp foi a ferramenta mais utilizada para coordenação dos voluntários, mesmo com eventuais limitações de sinal de Internet em vários locais logo após as enchentes. 30% recrutaram pessoas por meio das redes sociais. De maneira geral, os respondentes concederam avaliação média 8,82, em uma escala de 0 a 10, à gestão dos voluntários em seus próprios abrigos.
Em Porto Alegre, ajuda para pessoas e animais
A analista de contratos do Sesc, Mariani Paranhos, atuou como voluntária no abrigo no ginásio do Sesc Protásio Alves, na Capital. Ela contou que a casa de seus pais foi atingida pela inundação, mas antes, no dia 3 de maio, esteve na residência para resgatar os animais de estimação da família.
No dia seguinte, Mariani e a companheira, a enfermeira Manoela da Silva, saíram para comprar roupas e itens de higiene para as cerca de 150 famílias que seriam acolhidas no local. No início, ela, assim como muitos outros, promoveu uma campanha no Instagram para arrecadação de itens como fraldas e remédios, além de transportar roupas e cobertores para o abrigo.
Em paralelo a isto, as duas abrigaram animais resgatados da enchente. “Quando a situação mais crítica amenizou e os abrigados estavam instalados de forma confortável e bem assistidos, nossa função passou a ser a de realizar plantões para oferecer apoio”, contou Mariani. Manoela atuou no ambulatório e na farmácia montados no local.
“Eu (Mariani) atuei em diversas frentes: entrega de alimentos e materiais de higiene, separação de roupas, monitoramento dos sanitários e, inclusive, interagindo com os abrigados, ouvindo suas histórias e tentando entender como chegaram até ali”.
Uma das histórias mais comoventes, acrescentou ela, foi o resgate de duas gatinhas de um dos abrigados, encaminhadas ao viaduto da avenida Benjamin Constant, onde foi montado um ponto de apoio para animais.
“A alegria dele em recebê-las de volta foi extremamente emocionante”, disse Mariani. Uma delas estava grávida, e seus nove filhotes foram acolhidos por ela e Manoela. Para ela, a experiência foi “incrivelmente transformadora”.
“Aprendi lições valiosas e passei a valorizar aspectos da vida que antes não dava a devida importância”.
Ainda em Porto Alegre, a voluntária Luísa Sigaran Machado é mantenedora do Abrigo do Gasômetro, criado na ocasião das cheias quando ainda era localizado provisoriamente na usina homônima, e um dos poucos ainda ativos na Capital até hoje.
Em agosto de 2024, o Correio do Povo relatou a história desesperadora do abrigo mantido por ela e mais três voluntários, e que estava em estrutura cedida provisoriamente pelo Kennel Club, na Zona Sul. O clube demandou a devolução do local e o destino dos 40 animais então abrigados era incerto. O abrigo conseguiu se mudar para um sítio alugado, porém, as dificuldades permanecem.
O número de animais hoje está em 150 e as verbas para a manutenção do espaço são insuficientes para manter o projeto. “A gente nasceu na enchente, mas permanece ainda, porque esta é uma demanda sem políticas públicas permanentes. Estamos enfrentando um problema que todos os abrigos enfrentam, que é a questão financeira. As doações da sociedade também diminuíram bastante.”
O estudo da MGN apontou também uma questão de fundamental importância no contexto da comunidade enlutada pelas perdas da tragédia, mas por vezes ignorada: a falta de suporte psicológico para os voluntários.
Para Luísa, trabalhar há quase um ano sem parar em nome da causa é algo que mexe com o corpo e a mente. “Nosso físico e emocional está extremamente abalado, porém, não podemos parar. Precisamos seguir na luta. Além da rotina de uma ONG, construímos as baias onde os animais ficam, e não podemos abandoná-los. É algo que enfrentamos mais ou menos sozinhos”.
Satisfação em poder ajudar
Em Novo Hamburgo, o jornalista Alex Günther contou ter vivido uma experiência solidária única como voluntário no ginásio de uma igreja próxima de sua casa. “Fui impelido a ir ao encontro de quem não teve a mesma sorte do que eu e minha família. Pensei que só tinha duas opções diante dessa realidade: participar ou simplesmente adoecer no conforto do lar, enquanto rolava a tela das redes sociais ou observava, atônito, a TV”.
Além de doar roupas e alimentos, ele participou da rotina do local, onde estavam abrigadas 120 pessoas. “Um responsável me repassou uma série de instruções, como observar os banheiros, o pátio e atender aos doadores. Em poucas horas, já buscava realizar tarefas mais desafiadoras, como buscar uma grande panela efervescente de sopa no prédio ao lado, dois andares acima do chão, sem elevador. E, o mais importante, ouvir. Essa era uma das maiores riquezas que você poderia oferecer.”
A pedagoga Natalia Haas de Mello, moradora de Novo Hamburgo, foi outra voluntária no município. De acordo com ela, tudo começou no dia 4 de maio, quando chegou ao ginásio da Fenac, abrigo mantido pela prefeitura, para auxiliar as famílias atingidas pela inundação. Dali, foi direcionada a outro ginásio, o Municipal Alberto Mosmann, onde havia somente cinco famílias com seus pets.
“Não sabia exatamente o que faria, onde ficaria e como a situação estava de fato. Quando cheguei, a cena me impactou profundamente. Vários estoques de roupas, alimentos e outros itens estavam sendo preparados para atender os desabrigados. A tristeza e o desespero tomaram conta, mas eu sabia que precisava permanecer firme e ajudar o máximo que pudesse”, recordou ela.
No entanto, a situação escalou rapidamente. “A demanda por colchões, roupas de cama, roupas e produtos de higiene era imensa. Tentei, da maneira mais organizada possível, distribuir os itens com cautela, já que todos estavam em estado de desespero, buscando o mínimo para se reerguer”. A Fenac chegou a ser o segundo local do RS com mais pessoas abrigadas, com 2,2 mil, ainda conforme o levantamento dos órgãos de governo. Mesmo exausta, Natalia relatou ter permanecido vários dias nesta função.
“Essa experiência foi algo que nunca imaginei viver. Porém, foi também um momento de grande aprendizado, onde pude testemunhar a força da solidariedade e da união entre as pessoas”, relatou.
Monumento aos voluntários e ideias para o futuro
Como forma de agradecimento ao trabalho de voluntários anônimos dedicados a unir forças para os resgates das vítimas da enchente e aqueles atuantes nos locais de abrigamento, foi inaugurado, em um dos locais mais icônicos de Porto Alegre, o monumento Heróis Voluntários.
Com 4,5 toneladas, 4 metros de altura, 6 metros de comprimento e 2 metros de largura, a obra foi desenvolvida pelo artista plástico Ricardo Cardoso sob encomenda da Federasul e Associação Comercial de Porto Alegre (ACPA). A escultura foi inaugurada em dezembro na orla 1 do Guaíba, junto a Usina do Gasômetro.
“A cena retratada no monumento expressa um movimento espontâneo de milhares de pessoas que atenderam a um chamado íntimo, uma voz interior que as impulsionava a dar o melhor de si, arriscar a vida para salvar desconhecidos, chamar para si a responsabilidade pelo resgate e acolhimento na tragédia”, disse o presidente da Federasul, Rodrigo Sousa Costa.
“E num país em que tantas vezes tentam nos dividir, emergiu uma demonstração de união pelos mais nobres valores, através de nossa capacidade de atuação coletiva.”
De acordo com ele, as empresas levaram sua capacidade produtiva a serviço do bem comum nos abrigos, naturalmente fazendo com que tenham sido citadas entre os principais parceiros dos abrigos.
“Elas emprestaram capacidade de gestão à organização dos processos para que tudo acontecesse melhor e mais rápido, muito além dos recursos aportados”, pontuou o presidente da Federasul. “Foi uma demonstração do potencial de superação pelo empreendedorismo e voluntariado, historicamente subutilizado no Brasil.”
A pesquisa também trouxe ideias e reflexões para o futuro. 97% das pessoas que responderam relataram ser importante o fortalecimento de redes de organizações e voluntários para situações de emergência. Porém, somente 24% dos organismos que gerenciaram abrigos possuem planos específicos para a gestão de crises.
Assim, para a MGN, o dado evidencia uma lacuna que pode ser preenchida com iniciativas mais estruturadas, especialmente considerando os desafios climáticos cada vez mais recorrentes. Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), divulgado em fevereiro deste ano, apontou que Porto Alegre pode ter nova enchente semelhante à de 2024 nos próximos 30 anos, considerando os atuais impactos das mudanças climáticas em curso.
A enchente do ano passado, cuja cota no Cais Mauá alcançou 5,35 metros em maio, afetou 160,2 mil pessoas, 39,2 mil edificações, 45,9 mil empresas, 28 estruturas do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), 160 estabelecimentos de ensino, 31 de saúde e 198 equipamentos públicos, como praças e parques, somente na Capital, de acordo com dados da administração municipal.
No coração das pessoas, a histórica inundação deixou um legado de que estas entidades de auxílio aos desabrigados devem ser fortalecidas diariamente. “Elas fazem um trabalho fundamental, e são, muitas vezes, o primeiro apoio de resposta a momentos de crise”, salientou Nonohay.