Performance do trigo pode não se repetir

Performance do trigo pode não se repetir

Plantio da safra de 2023 no RS deverá considerar variáveis como a formação do fenômeno El Niño e a queda na rentabilidade

Por
Camila Pessôa

Os produtores de trigo do Rio Grande do Sul viveram, em 2022, uma safra que pode ser chamada “dos sonhos”. A combinação de boas condições climáticas para a cultura aliada a uma demanda forte pelo grão nos mercados interno e externo fez com que a triticultura salvasse muitos estabelecimentos agropecuários dos prejuízos significativos da safra de verão, com perdas na soja e no milho na casa dos 50% ou mais. No ano passado, em uma área plantada de 1,4 milhão de hectares, o Estado colheu 5,7 milhões de toneladas, volume considerado histórico para os últimos anos.

Com a estiagem registrada novamente na safra de verão 2022/2023, o plantio do trigo volta a oferecer esperança de rentabilidade aos agricultores que perderam com o milho e com a oleaginosa. Mesmo antes da divulgação de estimativas oficiais para a safra do trigo em 2023, o setor já menciona a manutenção da mesma área do ano passado, talvez até com algum crescimento, ficando à frente do estado do Paraná, que já iniciou a semeadura e anunciou o aumento de sua área para 1,36 milhão de hectares, 13% a mais que a consolidada na safra de 2022.

O diretor da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), coordenador da Comissão de Trigo e Culturas de Inverno da entidade e presidente da Câmara Setorial do Trigo do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), Hamilton Jardim, reconhece que o produtor que plantou no verão chega à safra de inverno descapitalizado e com dificuldades para a obtenção de crédito. No entanto, ressalta que houve recuo nos custos de produção, o que pode incentivar o cultivo.

Tendência de expansão da área de cultivo de trigo

O chefe-geral da Embrapa Trigo, Jorge Lemainski, confirma que a tendência para 2023 é de expansão da área de cultivo de trigo no Brasil e destaca o sucesso do grão brasileiro nos últimos anos. Lemainski relembra que a safra de 2021 foi um marco para a exportação do trigo, em especial para o Rio Grande do Sul, que destinou mais de 2,9 milhões de toneladas do cereal para 14 países, referenciando internacionalmente a qualidade do grão brasileiro. “As exportações brasileiras de trigo, nas duas últimas safras, estão na ordem de 3 milhões de toneladas, segundo analistas de mercado. Espera-se a continuidade desse cenário”, complementa. 

O histórico das últimas duas safras e a previsão positiva para o ciclo deste ano, contudo, pode esbarrar em um elemento complicador: o clima. De acordo com a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês), há 62% de chance de ocorrência do fenômeno El Niño entre os meses de maio e julho deste ano. O fenômeno, caracterizado por um aquecimento anormal em determinadas regiões do Oceano Pacífico, causa um aumento no volume das chuvas em outubro, novembro e dezembro. Nesses meses é realizada a colheita do grão e o excesso umidade é prejudicial. “Porque quando a gente tem excesso de chuva, há ambiente favorável para o desenvolvimento de doenças, encharcamento do solo e redução da radiação solar”, explica a professora da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e especialista em agrometeorologia Eliana Klering. A professora destaca que este ambiente representa perdas diretas à lavoura, como no crescimento das raízes e da parte aérea da das plantas. O fenômeno, detalha Eliana, pode desencadear diminuição de produção, queda de qualidade do grão e problemas na colheita. 

A acomodação do mercado

Outro cenário que se mostra diferente do observado em 2022 e que pode trazer perspectivas menos otimistas para exportações e rentabilidade este ano é a acomodação do mercado em relação às incertezas geradas pelo conflito entre Ucrânia e Rússia e que favoreceram o comércio do grão em 2022. O analista da área de trigo do Departamento de Economia Rural (Deral) do Paraná, Carlos Hugo Godinho, ressalta que, hoje, a situação em relação à guerra está absorvida. “A gente não tem um fator de destaque maior que possa estimular exportações”, afirma. Ao mesmo tempo, ele acredita que o Brasil deve manter, ao menos, um nível de produção que garantirá o abastecimento interno e a redução nas importações, como ocorreu ao longo do passado. 

Godinho recorda, também, que os custos de produção estão abaixo daqueles que foram praticados em 2022, em especial para os fertilizantes. Mesmo assim, ainda em patamares altos se comparados às cotações do grão. “Os custos e preços ainda estão muito próximos. Dependemos muito da cotação internacional. Deve haver uma pequena redução de produção no mundo no ano que vem, mas não está muito claro”, avalia. 

Hamilton Jardim analisa que, neste contexto, os preços da commodity tendem a permanecer próximos aos praticados neste momento, entre R$ 78,00 e R$ 79,00 por saco de 60 quilos. O dirigente admite, porém, que os valores só devem começar a se definir mais claramente a partir da chegada da safra do Paraná, em setembro, mesmo mês que, no ano passado, a média da saca estava em R$ 104,39 em levantamento realizado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP. 

Acerto nas cultivares é fundamental no resultado

Para o diretor executivo da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (Fecoagro), Sérgio Feltraco, a possibilidade de El Niño requer que o produtor adote cultivares resistentes ao excesso de chuvas. “Pensando em ano de El Niño, é bem importante se atentar a escolha de materiais mais tolerantes à giberela e à germinação na espiga”, corrobora a diretora de pesquisa da Fundação Pró-Sementes, Kassiana Kehl, que anualmente coordena o ensaio de cultivares de trigo Estado. Ambos concordam, entretanto, que o cenário atual para a safra de trigo ainda é incerto. “Mesmo tendo uma previsão de El Niño, não há uma confirmação de que isso vai atrapalhar a safra de trigo”, lembra o gerente comercial regional Sul da Biotrigo Genética, Tiago de Pauli. 

De acordo com Pauli, o produtor costuma procurar nas sementes um equilíbrio entre rendimento e sanidade, o que torna a cultivar TBio Trunfo, por exemplo, uma opção de alta procura, pela resistência à giberela e à germinação na espiga, problemas que ocorrem em anos chuvosos. A Biotrigo também oferece a superprecoce TBio Calibre, lançada este ano, adequada para o plantio na janela de fechamento da semeadura. O lançamento fez tanto sucesso entre os produtores e está praticamente esgotado nas lojas. “Temos também a XBio Fusão, um mix de cultivares com a função principalmente de trazer ao produtor melhor estabilidade produtiva”, acrescenta Pauli, detalhando que se trata de uma mistura de duas cultivares adaptáveis tanto a ambientes úmidos quanto secos.

A empresa observa uma boa procura pelas sementes, mas o gerente pondera que, para atingir a rentabilidade que procura, o produtor deve sempre buscar a cultivar mais adequada ao que pretende investir, às características da região e ao manejo que deseja fazer. “Agora, principalmente nesta época, o produtor está tomando a decisão se vai plantar ou não o trigo e, a partir daí, ele vai na busca dos insumos. A semente entra nesse combo”, explica. À medida que a janela de plantio se aproxima, há uma crescente procura por sementes. Segundo Pauli, em meados de abril, cerca de 70% do volume esperado de cultivares da Biotrigo já havia sido comercializado. 

Como escolher a cultivar certa?

A Embrapa também disponibiliza cultivares com diferentes propósitos, com focos na rentabilidade, maior aptidão para panificação, biscoitos, ração animal ou até produção de etanol, como enumera o pesquisador da unidade de Trigo, Eduardo Caierão. Ele ressalta que, para escolher a melhor cultivar, o produtor deve saber muito claramente qual é o seu objetivo. “Nós temos um livro com as indicações de trigo para cada safra e lá nós temos todas as informações relacionadas à densidade de semeadura e todas as resistências às doenças das diferentes cultivares”, explica.

Um dos últimos lançamentos da Embrapa Trigo, a cultivar BRS TR271, deve chegar de forma generalizada aos produtores em 2024. O portfólio também inclui cultivares precoces como a BRS Reponte e a BRS Belajoia. “A BRS Belajoia é uma que tem o maior equilíbrio em termos de resistências foliares entre as cultivares e a BRS Reponte é o nosso carro-chefe em termos de potencial produtivo”, complementa, ao lembrar que esta cultivar também tem potencial para ração animal, produção de etanol e exportação.
Além disso, há a linha de trigos de duplo propósito, como a BRS Tarumaxi e BRS Pastoreio, em alta com o crescente uso do grão para a ração animal. “O conceito que a gente tem é que o trigo para a ração animal tem que ser um trigo nobre também, porque ele serve para alimentar uma cadeia importante, que é a de suínos e aves, que faz parte da nossa cadeia alimentar também”, enfatiza o pesquisador. Conforme Caeirão, uma vez que anteriormente tinha-se a ideia de que apenas os materiais não aproveitados para o consumo humano deveriam ir para a alimentação animal, não há hoje cultivares desenvolvidas especificamente para a ração.

As principais características buscadas para o desenvolvimento dessas cultivares são a alta produtividade e um teor de proteína compatível com o mercado, além da necessidade de investimento na qualidade sanitária desses grãos, que precisam ter uma boa resistência a doenças como a giberela, por exemplo, uma vez que animais nas indústrias têm sensibilidade a micotoxinas.

A escolha de uma boa cultivar depende, inclusive, da condição do solo e do manejo. “Como este ano tem essa previsão de El Niño, a gente tem que sempre preconizar e fazer um bom manejo fitossanitário, principalmente no controle de doenças de espiga, aí entra a giberela, que, para mim, é a doença mais importante da cultura do trigo, pelo dano potencial no rendimento e produtividade que ela acarreta”, comenta Pauli. Por isso, segundo ele, o produtor precisa estar atento, também, à aplicação de fungicidas. Quando a planta estiver com metade de suas flores expostas é preciso fazer uma aplicação com produtos de alto nível tecnológico.

Caierão enfatiza, ainda, que o sucesso das lavouras este ano vai depender muito das condições climáticas. “Dependendo do volume de precipitações durante o ano, o produtor terá de estar mais atento ao controle de doenças foliares e ao controle de doenças de espiga, entre elas, no caso do Sul do Brasil, e a giberela, muitas vezes associada a uma maior umidade”, conclui ele.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895