Alívio e desalento: moradores das Ilhas são resgatados e levados para Orla do Guaíba

Alívio e desalento: moradores das Ilhas são resgatados e levados para Orla do Guaíba

Força-tarefa coordenada pela Defesa Civil contou com um grande número de voluntários

Flávia Simões

Força-tarefa coordenada pela Defesa Civil contou com um grande número de voluntários

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Joice Pinheiro acordou debaixo d'água. Moradora do arquipélago das ilhas, estava acostumada a cada grande chuva ver sua casa sendo inundada. Mas quando a água começou a avançar, ainda na segunda-feira, ela não imaginava que dias depois teria que correr, junto do marido, para o único lugar onde o rio não conseguiu chegar: o telhado. A operadora de caixa e o marido foram resgatados pela força-tarefa que está trazendo os desabrigados do arquipélago e de municípios vizinhos, como Guaíba e Eldorado do Sul, até Orla.

Coordenado pela Defesa Civil, o grupo que vem realizando os resgates é múltiplo, dos bombeiros à polícia civil. Ao longo de todo o sábado, inúmeras viagens foram feitas na busca por vítimas. O trajeto de travessia do Guaíba, contando de ida e volta, leva em torno de 1h30min, e a forte correnteza não facilita o trabalho. Embarcações maiores, como barcos, são utilizadas para trazer o máximo de moradores possíveis. Já os jet-skis, tanto aqueles de responsabilidade do poder público quanto o de voluntários que se disponibilizaram, auxiliam, principalmente nos lugares onde o acesso por barco é mais difícil.

Joice desembarcou na Orla, só com a roupa do corpo, ainda pela manhã, mas segue no local esperando a chegada dos irmãos. Irá se abrigar na casa de familiares, mas não deixou a Orla até ter certeza da chegada do restante da família – o irmão, morador da Ilha do Pavão, e as irmãs, que residem em Eldorado do Sul. Apesar disso, não tinha quaisquer notícias deles desde sexta-feira.

Ela não é a única que, após resgatada, segue no local esperando amigos ou familiares, o medo é de acabar ficando em abrigos separados, longe um do outro. Apesar de sempre cheia, a Orla do Guaíba, neste sábado, está especialmente lotada, tal qual um dia de sol. Oficiais, voluntários e resgatados se misturam aos curiosos, que parecem não se importar em observar, de perto, o desespero alheio.

Tales Faller também esperava. Não conseguiu convencer os avós a deixarem a casa antes, e veio sozinho para Porto Alegre, ainda na quinta-feira, onde felizmente tem um apartamento. Ainda pela manhã, foi para Orla na esperança de que os avós – e o cachorro Mentira – fossem resgatados. E foram. "Eu fiquei desde a madrugada esperando eles. Acontece que (os salva-vidas) não estão conseguindo chegar nos lugares", contou. Seu avô, Flávio Garcia, mora há mais de 50 anos nas ilhas e foi categórico ao comentar que nunca viu cenário igual na região onde cresceu e formou família.

"Como o pessoal da ilha já é acostumado, nunca acredita que vai encher tudo isso. A maioria dos que ficam lá, (é porque) tem medo de perder as coisas e ficam até o limite. Mas a gente nunca sabe quando vai ser o limite", afirmou Tales.

Na Orla, três tendas estão armadas nos espaços onde a água ainda não invadiu: uma de primeiros-socorros, onde os moradores que vão chegando são direcionados para terem os sinais aferidos e o auxílio médico caso necessário; as outras armações abrigam as inúmeras doações que não param de chegar. Voluntários atendem os recém socorridos, disponibilizando kits de higiene e roupas, além de comida. Em uma desordem ordenada, tentam atender às necessidades mais urgentes.

Em outra ponta, próximo ao desembarque, outro grupo de voluntários organizava a comida: reunia sanduíches, água, café, bolachas e frutas para alimentar tanto os moradores que iam chegando, quanto quem trabalhava. As equipes iam se revezando ao longo do dia para garantir que nenhuma vítima, oficial ou voluntário passe fome ou sede. Enquanto isso, um ônibus aguardava para fazer o transporte dos moradores para os abrigos espalhados pela cidade.

Entre as movimentações incessantes, os moradores que iam chegando também ajudavam como podiam. Com muita dificuldade – em função da ausência de rede – se comunicavam com os muitos que ainda permanecem esperando ajuda, empoleirados em telhados e árvores, e transmitiam a localização para os encarregados de fazer os resgates.

Chuva é sinal de desespero

É no olhar desesperançoso e assustado das crianças que o terror que o Rio Grande do Sul vem enfrentando se projeta. Isabeli Lima, de 5 anos, se agarra às pernas da mãe, Janaína Lima, em qualquer sinal de chuva. A pequena desenvolveu um pavor e, agora, não consegue mais ficar sozinha. As duas, junto da outra filha de Janaína, Maria Clara, 7, deixaram a casa onde moravam ainda sexta-feira, no último ônibus (do Exército) que conseguiu sair das ilhas. A família reencontrou Cristiano Janhann, marido de Janaína, hoje. Na Orla, ela ansiava pela chegada da mãe e das irmãs para que juntos pudessem ir para um abrigo.

| Foto: Flávia Simões / Especial / CP

Durante os poucos segundos em que se permitiu perder um pouco da firmeza necessária para cuidar das filhas, Janaína chorou. Se desesperou ao pensar num futuro: autônoma, perdeu tudo que tinha em casa, inclusive os freezers que utilizava no seu negócio de peixe frito. Agora, se questiona de onde virá a renda para cuidar das filhas.

O mesmo olhar de desalento no rosto de Isabeli e Maria Clara pode ser visto nas outras tantas crianças que chegam na Orla. Três irmãs – que apesar da pouca idade, já viveram o suficiente para adquirir pavor de andar de barco – foram socorridas pela tia durante a tarde. A irmã mandou as filhas para que ficassem seguras, sob tutela da tia, mas permaneceu lá, ao lado do marido, esperando resgate. A tia se esforçava para acalmar e prover aconchego às três sobrinhas, e uma delas comemorou: "ganhei duas meias quentinhas".

Além das pessoas, a força-tarefa também tem resgatado dezenas de animais, tanto aqueles que vêm junto dos seus donos, quanto os demais resgatados. Uma série de voluntários trata das necessidades iniciais dos bichanos, seja comida ou uma forma de esquentá-los. E, aqueles que não tem tutor são direcionados para um espaço improvisado, onde são cuidados por demais voluntários.

Abraçado em uma caixa de transporte rosa, José Valdir Tena atravessou a pé o trecho, agora debaixo d'água, entre a rua Riachuelo e a Orla do Guaíba. Morador das ilhas, conseguiu sair de casa na sexta-feira, quando foi resgatado, de barco, por um amigo. Com a trégua da chuva neste sábado, fez questão de voltar para salvar o seu gato. "Quase não consegui", disse aliviado, com o animal assustado entre os seus braços.

Maria Lidiane Costa, infelizmente, não teve a mesma sorte. A técnica de enfermagem precisou segurar o choro ao contar que não conseguiu trazer seus gatos. Resgatada durante a tarde, narrou o pavor de ver as casas irem afundando. A ajuda por helicóptero até chegou antes, na sexta-feira, mas não conseguiu alcançar os moradores em função da força provocada pelas hélices, que ameaçavam desabar as casas ao redor. Apesar de, assim como os demais, ter saído só com roupa do corpo, Maria conseguiu que a filha fosse levada ainda ontem para um lugar seguro. "O importante era a vida dela", disse. Enquanto aguardava outras duas amigas que ainda estavam na Ilha da Pintada, ela cobrou mais atenção aos outros tantos moradores que seguem esperando para serem resgatados.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895