Cidades gaúchas atingidas pelas cheias resistem graças ao esforço coletivo

Cidades gaúchas atingidas pelas cheias resistem graças ao esforço coletivo

Homens e mulheres dedicados em ajudar formam corrente de solidariedade pela vida

Cristiano Abreu

Animais foram socorridos por voluntários nesta tarde na Capital

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Na imensidão de água que transforma as ruas da zona Norte de Porto Alegre em extensão do Guaíba, quatro barcos percorrem a avenida Paraná, no bairro São Geraldo. Os ocupantes, todos especializados em resgates mantém o silêncio, tentando buscar qualquer som que os leve até quem esteja aguardando por socorro. Eis que latidos chamam a atenção de uma das equipes, que ruma até um terreno abandonado. No local, uma cachorrinha, já quase sem forças, e assim como ela, pelo menos outros dez cães lutavam pela sobrevivência. Assustados, um a um foram retirados do local e abrigados em segurança, porque os gaúchos, com ajuda de profissionais e voluntários dos mais diversos cantos do país, fecharam um pacto para que nenhuma vida seja deixada para trás.

"A gente tava no final da rua, depois da (avenida) Brasil, patrulhando, e escutou o latido dos cachorros e entrou no terreno. Ela estava nadando sozinha, quando saiu não tinha mais força para ficar em pé, está bem debilitada e com uma pata machucada", contou o enfermeiro David de Patrick, um dos voluntários que veio de Santa Catarina, enquanto se preparava para buscar os demais cães, que há dias resistiam sobre uma ilha de escombros.

A Capital e as demais cidades do Estado atingidas pelas cheias resistem graças ao esforço coletivo de homens e mulheres dedicados em ajudar. Seja em tendas improvisadas nas ruas, em aeronaves, automóveis, embarcações ou em abrigos, a corrente de solidariedade formada alcança a todos neste momento.

Vilmar (E), Marciano e Jairo (D) vieram de fora do Estado apoiar gaúchos | Foto: Mauro Schaefer

O Marciano Pereira coordena um grupo voluntário especializado em resgates de alto risco, o Gerar, vindo do município catarinense de Jaraguá do Sul. Com a experiência de quem já deu suporte a vítimas de tragédias como as ocorridas em Brumadinho (MG) e Petrópolis (RS), retiraram centenas de pessoas e animais de prédios ilhados na zona Norte de Porto Alegre.

"Iniciou em 2008, quando a nossa cidade ficou embaixo d'água. Em 2009 montamos o grupo, que também já esteve no Chile, no Haiti e em Portugal", garante.

Entre os voluntários do Gerar está o empresário Vilmar Catone. Aos 60 anos, demonstra fôlego de menino para ajudar na capital gaúcha. "É para fazer a diferença na vida, sair da zona de conforto para trabalhar e depois deitar a cabeça na cama de alma lavada", relata.

O bombeiro voluntário Jairo Machado veio de Joinville. Nos últimos dias atua com colegas em resgates no bairro Menino Deus. "Muitas pessoas ainda estão em andares altos em prédios da região, a maioria não quer deixar suas casas. São resgates difíceis pelo trabalho de convencimento que é necessário, e pelo acesso, pois alguns lugares a água chega a dois metros de altura", conta.

Pessoas se arriscam e não querem sair de suas casas no bairro São Geraldo | Foto: Mauro Schaefer

As buscas vão do amanhecer até o último instante de luz natural possível. E o esforço para que as pessoas ilhadas deixem suas casas nem sempre dá certo. A aposentada Lurdes Pacla, 70 anos, não quer abandonar o apartamento na rua Ernesto da Fontoura, no bairro São Geraldo. Nem a filha, Anair Karine, que foi levada ao local de barco pelos Bombeiros, conseguiu demover a mãe. "Ela tá no terceiro e até me xingou, disse que não adianta mais convidar", revelou a filha, que deixou um celular carregado e comida para a idosa.

Anair Karine (em pé, de verde) não conseguiu convencer mãe a deixar casa em que vive | Foto: Mauro Schaefer

A conversa com moradores ilhados e mesmo os resgatados é feita por profissionais de saúde mental. Psicólogos com a Michele Tamagno atuam como voluntários neste acolhimento no ponto de apoio montado próximo ao Pontal, na área central de Porto Alegre. "A sensação de poder fazer parte do recomeço destas pessoas... elas atravessaram o lago Guaíba para começar novas vidas, é simbólico", explica a profissional, que é moradora do bairro Floresta.

Nos abrigos, muitas mãos são estendidas, seja para alcançar roupas limpas, alimento, comida e afeto. Em Guaíba, na região metropolitana, a enfermeira Morgana Leite, 51 anos, oferece apoio aos desabrigados da vizinha Eldorado do Sul no Ginásio Coelhão. "Não tem como descrever, tem coisas que te emocionam. As pessoas chegam aqui molhadas, confusas, com fome e com sede, a primeira coisa que a gente faz é oferecer roupa seca, depois o alimento, depois acomodamos eles, começamos uma triagem em relação a medicações de uso contínuo. A gente recebe muito idoso perdido, e quando eles reencontram a família, é o maior presente que a gente recebe", desabafa Morgana.

O Coelhão concentra também as operações de resgate aéreo e transporte de suprimentos às regiões em que ainda não é possível. Por lá o comandante Guilherme Vieira faz dezenas de pousos diariamente desde o início da crise climática que desabrigou milhares de pessoas no Rio Grande do Sul. As viagens incluem o transporte de alimentos, medicamentos e até bolsas de sangue. "Eu vim só para ajudar. De coração", resumiu o voluntário, natural de Viamão e que trabalha para uma empresa de Santa Catarina. Ele convenceu os donos da aeronave que pilota a apoiar a ajuda humanitária aos gaúchos.

Muitos veterinários atuam nos abrigos. Em Guaíba, Luísa Cardoso e Maria Laura Dal Rossi estão dedicadas à recuperação dos animais resgatados. "Tem muita gente, o pessoal tá doando ração. A maioria das famílias chegam com seus bichinhos, e muita gente chega aqui procurando seu pet perdido. Eles chegam acuados, estressados, debilitados. Recebem comida, água, cama e triagem de saúde", detalha Luísa.

Operações de resgate iniciam ao amanhecer e só findam quando cai a noite | Foto: Mauro Schaefer

Não havia mais luz quando o enfermeiro David de Patrick, voltava da última ronda de barco pela região da avenida Cairú, na tarde desta quinta-feira. Exausto, porém feliz, ele abraçava os demais voluntários após a equipe resgatar mais um grupo de pessoas e animais na região. "Ninguém fica pra trás, toda a vida tem seu valor e vamos seguir trabalhando por todos", enfatiza.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895